COM A SUA COMPANHIA
Aquela família vivia distante. Cada um no seu canto, com o seu problema.
Vivia sem compartir emoção, nem mesmo problema, tamanha a insensibilidade dos quatro: a matriarca e seus três filhos, sendo um homem, duas mulheres.
O primogênito tornou ao seio da mãe, quando não se houve bem no matrimônio.
Temeroso dos dias atuais, não quisera realizar o desejo da consorte, que se conformaria em ser apenas primípara, principalmente se tivesse sorte trazer à luz um filho homem.
Mas nada disso o comoveu.
Restou a ambos lembranças de bons dias vividos.
A irmã Nélia mesmo não quis casamento. Preferiu realizar-se profissionalmente, qual administradora.
A irmã Júlia, embora namorasse, não conseguia apagar a memória de seu genitor, inexistente há cinco anos, quando possuía treze primaveras.
Em visita à tia Amélia, Olavo encantou-se com a gata Maia, em estado interessante. Persa linda, como é natural a felinos domésticos.
Sob promessa de oferecer-lhe um filho, eis que tia Amélia liga para Olavo, noticiando-lhe o nascimento de cinco exemplares dos quais um prometeu a ele.
De início ninguém aceitou de bom grado aquela adoção.
Mas ao notar a gatinha, tão bela, carente e fofinha, dependente, a miar, iam se deixando envolver pela iniciativa de Olavo, que procurava instalar da melhor maneira a mais nova caçula do lar.
À medida que o tempo corria, Fina ia a todos cativando, encantando.
Reclamando os cuidados de bebê, como tal era tratada.
Ganhava roupas, vacinas, alimentação, banho perfumado e corte de unhas.
Depois do desmame, aliás, somente após completar-se, tia Amélia o chamou para que a adotasse. Não demorou um ano para castração: decididamente Fina lhes seria dama de companhia superestimada.
Bastante alegre, crescia como sói a uma criança travessa, serelepe.
Correndo atrás de bolinha de papel amarrada a um barbante, dava cambalhotas e tornava-se a guardiã do lar, no cuidado de zonear, soberana, o seu território: barata, embora raramente emergisse, e a outros, perseguia implacavelmente.
Excessivamente afagada, logo estabelecera correspondência vibratória e astral com os seus adotantes.
Bastava que saíssem, e ao retorno, a metros de distância da porta principal, eis que Fina miava adivinhando-lhes a chegada.
Ronronava, roçava-se nas pernas, deitava-se aos pés da cama, sem sofrer exclusão, no cuidado de ter as patinhas calçadas.
Periodicamente Fina ia na veterinária que muito elogiava os cuidados, o tratamento de que era alvo.
Pelos sedosos, ausência de doenças, olhos verdes num brilho vivaz expressando a mata virgem e a beleza dos campos.
D. Camila, a matriarca, surpreendeu a seu geriatra, que instava com ela a saber o milagre de tanta alegria e ausência de depressão, sem que lhe fosse preciso o controle com drogas lícitas e adequadas a esta finalidade.
Ela sorria, mas não revelava o segredo.
Ao Supermercado em companhia de Olavo, fazia questão de levar-lhe um lanchinho apropriado em sachês.
O astral daquele lar verdadeiramente havia se modificado.
Fina, o motivo desta integração e ressurreição, veio-lhes a preencher o vazio existencial.
Jamais a felina venturosa ficava sozinha em casa.
Isto queria dizer que eles se esquematizavam de modo a que alguém na retaguarda restasse para assisti-la.
Aquela frieza se lhes extinguiu pelo advento da pequena Fina.
Na licença da vez, por analogia temerária, com perdão e sorriso do Cristo, poder-se-ia dizer que para aqueles quatro o tempo cindiu-se a.F e d.F. ou antes e depois de Fina.
Agora se cumprimentavam mais, no uso de braços para amplexos, lábios para ósculos e sorrisos.
O lar povoado de alegria, harmonia.
Fina era-lhes companhia, para estudo, audição musical, sala de um modo geral.
Sete anos passados. E o infortúnio bateu à porta das quatro personagens, por vacilação de Júlia, que não percebera a sua fuga ante a porta entreaberta que o vento cuidou de ampliar a abertura, facilitando-lhe não a fuga, mas distração e curiosidade da vida lá fora.
O alvoroço foi deveras. O presságio, a apreensão. Anúncios, cartazes, sob garantia de remuneração.
A angústia, principalmente, de D. Camila, que sofrendo oscilação de pressão arterial, esteve sob intervenção de remédios prescritos por seu geriatra.
Júlia não parava de se culpar, nada obstante o consolo de todos e do namorado veterinário.
A amargura qual nuvem cinérea e carregada prorrogava-se no astral daquelas pessoas.
Fina desaparecera definitivamente. Aos poucos a resignação foi se apossando dos corações, na admissão de duas possibilidades: morte ou roubo seguido de venda.
Júlia consolava-se no aceite de seu namorado que a arrastava para visitação de lares públicos de animais, notadamente cães e gatos, adotados pela sensibilidade de pessoas bondosas e afilhadas dos ideais do patrono dos animais São Francisco de Assis!
De todos, o quadro mais preocupante era o da matriarca, que sorumbática, se permitia a silêncio, se deixando esquecida no tempo, encerrada no quarto, sentada a uma cadeira de rodas.
Afeita à oração, o terço na contagem dos dedos delicados e magros de mãos em veludo na pele septuagenária, no esforço (em vão?) de estancar a saudade da neta querida, a pequena Fina.
“Que lhe teria acontecido?” — se perguntava, ou inquiria aos céus no clamor da resposta ou da justiça divina.
Entre o fantástico e a realidade, D. Camila se deixava levar no veículo da imaginação.
Sentia afeto especial por aquele animal, ser vivo, criatura de Deus, Pai comum a tudo que é, existe, respira; que sofria admitir sortes desiguais para a alma dos animais e dos homens; mas acreditava na equidade da justiça divina, sem sorte judia aos bichinhos, a sua Fininha.
Assim pensando, cochilando, sonolenta, em quase torpor, foi quando de repente julgando-se superexaltada em sua consciência, eis que D. Camila julga ouvir, impressionando nitidamente o seu sentido da audição, o forte miau de Fina, e para espanto dividido com alegria, eis que vê a sua netinha adorada a um metro de si!
Olhos abertos, verifica se não está sendo vítima de alucinação, constata no local um feixe ralo de pelos que o vento dispersa, e simultaneamente ouve três miados da sua gatinha querida.
Controlando a própria emoção, domina-se, percebe-se consciente, e a presença da realidade em torno do quarto em que se situa.
Visitada pela felicidade, por aquele evento, mensura o conflito e a impressão a causar aos outros, se se decida a narrar para todos a ocorrência inédita.
Preferiu antecipar-se ao repouso, visto que a luz vespertina não mais atravessa a janela de seu quarto, cedendo ao sereno que prenunciava a noite daquele outono sublime.
Razão havia-lhe para crer de ser a noite boa conselheira, ao efeito do sono, alimentada pela sensação incomum que lhe deixou ditosa, D. Camila reforçou os cuidados da sua Alma encomendada na rogativa de mais uma prece.
No dia seguinte, à mesa posta, percebiam-se semblantes ansiosos e ao mesmo tempo refletindo contentamento e alegria.
Era como se receio comum de revelação embargasse-lhes a voz presa na garganta, mas ao mesmo tempo, não conseguiam ocultar o brilho nos olhos, janelas refletoras do estado das Almas.
Querendo romper o silêncio defensivo, arriscando-se ao ridículo pelo feito narrado, coube a Júlia fazê-lo e... Para surpresa de todos entre si, todos haviam sonhado exatamente a mesma coisa, com a mesma Fina!
Racionais, porém, após sorrirem, da feliz coincidência, aduziram a realidade esclarecedora de um desejo realizado pela imaginação ou subconsciente, nada mais lhes restando senão sepultar aquela ideia e seguir em frente, porque Fina estaria morta provavelmente.
E assim se fez.
A um ano depois, Júlia ingressa na Faculdade de Veterinária, seguindo os passos do agora nubente, muito perto de graduar-se, o jovem Rubens.
À D. Camila Deus chamou. Não se foi magoada nem triste. Sentia saudades da pequena Fina, mas sentia-se consolada, e convicta de que estaria bem, reiteradas vezes sonhava com ela, embora a única que perseguia nesta ideia, não mais ouvida pelos demais, que procuravam dissuadi-la da esperança, de reencarnação ou seja lá o quê...
A Júlia, sim, fascinava a ideia de adotar não uma, mas três ou mais animais, tão logo pudesse fazê-lo.
Aguardando ensejo favorável ao cometimento, prosseguia.
Nélia e Olavo davam curso às suas vidas, sem mais preocupações ulteriores, sepultando o fantástico e o maravilhoso.
Sonharam, sim, com Fina a brincar no pátio, correndo serelepe, aparando as unhas – arranhando o forro do sofá, gesto instintivo e característico dos felinos domésticos.
Mas na sucessão dos dias, nenhum sonho mais tiveram, certos de que realizaram o seu desejo inconsciente: ver a Fina.
Naquela sexta-feira tudo mudaria para aqueles três. Dia incomum.
Ao cantar dos pássaros, demarcando território, pontualmente às cinco horas, numa algazarra politicamente ecológica, festiva, eis que um casal indica o local e para o carro, no breve ato de deixar em um cesto uma pequenina coisa.
A mulher se certifica e diz:
— Sim, foi daqui que a vimos sair.
— Por mim venderia todos! — Disse o homem em protesto.
— Não, prometi, que da cria, uma devolveria para compensar o que nos rendeu uma boa grana! Eles merecem.
— Mas a gata deles era castrada, e atualmente é morta.
— Ganância, não insista. Deixemo-la aqui, agora vamos.
Arrancaram, avançando sinal vermelho, embora sem fiscalização nem trânsito algum.
Assim é que do lado de dentro, quase à sexta hora, Júlia escuta uma voz felina.
A princípio julga tratar-se de imaginação, que se vai desfazendo na continuidade do vagido do bebê felino.
No costume coletivo em que todos se acordam cedo, Nélia e Olavo sentem-se atraídos e se unem a Júlia, que sorri e corre à porta para abri-la, verificando a encomenda deixada.
Todos se admiram enternecidos.
Em um pequeno cesto uma gatinha persa! Com semelhanças em Fina, embora o mar azul nos olhos.
Acolhem-na, suprem-na as carências.
Feita a adoção, reconhecida a paternidade no Cartório da Natureza que dispensa burocracia e papel, Júlia nota que a gatinha já houvera saído do desmame.
Afirme-se que os brinquedinhos artificiais, raramente usados, de Fina, ficaram preservados no espaço de uma dependência com porta fechada, o guarda-roupa para seus vestidos, bem como vaso com areia sanitária.
Por coincidência ou não, passadas algumas horas de adoração, carinho e afeto de seus pais, eis que a gatinha sem que ninguém lho indicasse ou induzisse, busca o caminho exato que vai dar à porta, que se abre para a dependência que armazena os objetos da gatinha Fina.
Eles se entreolham, notando que ela mia insistentemente arranhando a porta, rogando que a abra, e ao sê-lo feito, admiram-se da sua espontaneidade como a reconhecer cada item ali deixado na esperança de que Fina retornasse... Bolinha de papel, bercinho, roupinhas...
Por coincidência ou não, e homenagem póstuma, Nélia, Olavo e Júlia em comum acordo nomeiam a sua filhinha por gatinha Fina...