Perdendo-se

Naquele dia em que perdeu seu cachorro para a leishmaniose, Leonardo se sentou em frente ao computador e, com os olhos ardendo, desafiou o ChatGPT para um concurso de contos. Decidiram que o tema seria futuros alternativos, e Leonardo se pôs a escrever sobre o seu cão. Para muita gente, era só um cachorro, mas para Leo era como um braço ou uma perna. Imaginou-se sem uma perna. Andou manco até a cozinha, com sua muleta imaginária, e abriu a porta da geladeira para pegar um pedaço de bolo de banana. Era agora manco, e não se lembrava mais de um dia ter duas pernas.

Voltou para o quarto. Manco, bambo, lembrando de como era seu cão. Grande, amareludão e peludo. Chamava-o de "O Rei dos Cão", embora fosse fêmea. Era um cachorro inteligente que esperava os sinais para pegar os pedaços de carne do chão e abaixava o rabo e as orelhas quando Leonardo estava triste. No dia em que levaram o Rei dos Cão, Leo não pôde se despedir. Não estava em casa. Mas a prefeitura levou seu cachorro mesmo assim. Todo mundo falava: "lá no canil ele vai ter os melhores cuidados, vai estar seguro."

"Veja como as casas dos cachorros estão espalhadas pela cidade. São até melhores que a sua."

Uma lágrima brotou no seu olho esquerdo. Ouviu os latidos, abriu a aba do navegador e desafiou o ChatGPT. Estava tão triste com a perda de seu cão que parecia ter perdido a sua segunda perna. E, de fato, não a tinha. Ele não se lembrava, mas sempre fora um amputado bilateral. E por isso seu carro tinha um pedal adaptado. O que mais lhe doía, o que mais lhe doía no peito era saber que o Rei dos Cão fora morto pelo canil. Que tipo de lixo era Leonardo por ter permitido que estranhos tirassem o último suspiro de vida do Rei. Se era pela saúde pública, se tinha de ser feito, então que fizesse ele mesmo, o dono. O parceiro. O bando. Sim, ele e o cão eram um bando. Uma lágrima desceu pelo olho direito. Estava frustrado a tal ponto que era como se tivesse perdido os braços. E, ao olhar para baixo, não os via. Talvez nunca os tivesse tido de verdade. Apesar de suas lembranças. Batendo com uma folha de papel no nariz do cão, fazendo-o correr de alegria pela casa, latindo, afucinhando as coisas. Ou quando o abraçava contra o peito, carregando-o por sonhos afora.

Mas como, se não tinha braços?

Ajustou-se na frente do PC. Agora com dificuldade, apoiando os cotos dos ombros nos objetos. Tentava enxergar o que havia na tela. Mas ele nunca teve olhos. Talvez tivesse nascido cego. Era tudo um borrão. Já não sentia nada do pescoço para baixo. E, para cima, apenas uma tristeza profunda. O cão tinha dado seu último suspiro na frente de um estranho. Naquela mesa de pedra fria, com aquele cheiro horrendo de álcool e detergente. Esperando ele voltar. O cão estava esperando ele voltar. Então Leonardo não aguentou, e não se lembrava mais de ser Leonardo. Naquela mesma noite, depois de ter voltado sozinho do veterinário, mal conseguindo distinguir o 'se' do 'me' no título do seu conto, Leonardo perdeu a si mesmo, e nunca mais se achou.

Carlito Eudes Queiroz
Enviado por Carlito Eudes Queiroz em 26/07/2024
Reeditado em 27/07/2024
Código do texto: T8115523
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