A BELA ADORMECIDA.

Janela aberta.

O sol timidamente lança os raios primeiros no alto do morro, o verde brilhante da relva revelando-se molhada pelo sereno da noite. Ao longe, vacas despreocupadas com o que se passa ao derredor. No alto das árvores os pássaros despertam em cantos e algazarra. Criaturas da noite se escondendo na mata fechada. A brisa fresca e suave entrando pela janela do apartamento. Início de primavera, as flores se tornam mais belas, multidão de cores na campina espalhada, é a natureza exuberante mostrando-se a dama ilustre dessa passarela da vida campestre. Ainda na cama, Luisa contempla cada detalhe. Enchendo o pulmão com ar tão purificado, muito diferente da capital desvairada onde viveu tanto tempo.

Janela aberta.

Luisa quase em um transe hipnótico apenas observa. Os pensamentos em turbilhão se avolumando dentro da cabeça, cheios de quimeras, loucuras, imaginações horrendas, fantasiando o inexistente e inexplicável. Embora nos olhos nada deixasse transparecer, quem espiar atentamente a janela de sua alma certamente notará no lume dos olhos todas as suas angústias e questionamentos. Luisa nunca falou uma vírgula do que se passava dentro de si, nem mesmo para aquelas que se diziam amigas do peito. O sorriso sempre presente escondia lágrimas constantes e ausentes. O apartamento naquele condomínio próximo de uma reserva mais parecia uma chalé.

Janela aberta.

Luisa continuava deitada. O corpo magro e encolhido debaixo do cobertor, os cabelos longos desarrumados, olhos inchados. A vontade era de continuar ali, na solidão, curtindo a amargura da vida, que ela mesmo desejou encontrar. Luisa não se sentia como as demais mulheres da família, todas as vezes que lembrava das irmãs, primas, enfim, uma tristeza tomava contaminava o seu coração, deixando a alma debaixo de um terrível céu de bronze. O peso dentro de si era quase insuportável, de alguma forma, praticamente palpável. A prima Angélica, por exemplo, com o sorriso fácil, o corpo tão bem desenhado em cada curva, enquanto ela, tão magra, indefinida mulher, a prima por sua vez, era mesmo magnífica, assim como o casamento bem fundamentado, o esposo de Angélica sempre um exemplo de homem disposto e pronto a ajudá-la em tudo. Uma ponta de inveja tocou-lhe os lábios. Havia momentos em que Luisa desejava muito ser como a prima, ter o seu casamento, a sua vivência em cada momento. Ela sabia que era inveja que sentia, que era errado o sentimento ardendo dentro do peito, lágrimas vieram ao seu rosto, amargura ao coração.

Luisa sempre foi introvertida, desde a mocidade. Na escola evitava o quanto podia as amigas, quanto aos colegas, desses, nem sequer se aproximava, essa era verdadeira Luisa, confortável em seu mundo esquisito. Embora tivesse gostado de inúmeros meninos, nunca teve coragem de namorar com nenhuma de suas paixões da adolescência, já a prima Angélica, era a musa da escola, todos os meninos idolatravam-na, faziam tudo por ela, o que deixava Luisa com ainda mais antipatia e distanciamento de Angélica. Foram dias de grande angústia, dias que ainda atormentava de alguma maneira. Ela desejava continuar deitada, apenas observando as horas passarem, o tic e tac lento do relógio ditando o curso triste de mais um dia.

Era necessário levantar, havia muito a ser feito, a monotonia do trabalho no supermercado próximo a sua casa, um ano na mesma labuta interminável, odioso na maioria das vezes. Luisa levantou-se rapidamente, não queria dar vez para a preguiça. Colocou os pés descalços no chão. O esposo continuava dormindo, sono profundo, roncava. Ela ficou por alguns minutos olhando para o marido, esticado na cama, trabalhando a tarde tinha a mordomia de acordar a hora que desejasse. A noite anterior foi de frustração para ela, tão desejosa com relação ao marido, criou expectativas de uma noite de prazer e sexo, nada aconteceu, o marido sequer notou a camisola transparente, a calcinha nova, vermelha e de renda, minúscula, uma falha tentativa de provocá-lo, não funcionou. O primeiro pensamento junto às lágrimas foi dele ter perdido o interesse, certamente estaria se envolvendo com outra mulher. Luisa sempre desconfiada, porém, nunca teve coragem de confrontá-lo, tão pouco ergueu a voz para uma discussão em anos de casamento. Sua condição de dominada, de fraqueza a deixava profundamente deprimida e decepcionada consigo mesma. Ao levantar-se foi direto para o banheiro, despiu-se completamente diante do espelho, mirou o corpo nu, os seios fartos, a curva da bunda, ainda era uma mulher bela para os quarenta, perguntou a si mesma o que havia de errado com ela para o esposo não ter interesse.

Ligou o chuveiro, deixou a água quente percorrer o seu corpo, lágrimas desavisadas se misturando com a espuma do shampoo. Lembranças da época de namoro, das visitas do marido, tão fogoso que era. Ele sempre a visitava nas segundas, quartas e nos finais de semana. Às vezes, era raríssimo de acontecer do casal de namorados saírem para um passeio, ele preferia ficar na casa de Luisa, que na época morava com a mãe e uma irmã. A recordação dos beijos calientes, como ela gostava daquilo, nunca passaram dos limites, chegavam muito perto, porém, ela nunca teve relação sexual antes do casamento, as mãos bobas eram muito frequentes e extremamente prazerosas, embora não passasse disso.

Terminado o banho, Luisa se trocou, o esposo continuava dormindo, por certo, não acordaria antes das dez da manhã. Ela sempre deixa o café pronto, comprava pães, quando disposta fazia algo diferente, ovos mexidos, bacon. Não era a realidade daquele dia, muito cansada, indisposta, perto do ciclo menstrual, estava com os nervos à flor da pele.

Café pronto, havia pães que ela comprou na tarde do último dia. Lavou a louça do café, guardou tudo, Luisa odiava bagunça e louça suja na pia. O relógio anunciava horas traiçoeiras. Se não fosse para o ponto no próximo minuto, certamente perderia o ônibus. Pegou bolsa, celular, chaves e crachá, saiu apressadamente, passos largos. Ganhou a rua, calçadas esburacadas, o dia clareando lentamente, transeuntes igualmente apressados, cabeças baixas. Por sorte ela morava perto do ponto. Virou a esquina quase a correr, o ônibus apontava no final da avenida. Ponto lotado como sempre. Essa era sua rotina de todos os dias. No coração, o peso amargo da monotonia, a mesmice repetidamente. Luisa experimenta sentimentos de amargura, como se nada fizesse sentido, como se a vida não tivesse importância para ela.

Como sempre, ônibus lotado, trabalhadores anônimos em bancos duros e frios, faces femininas, masculinas, de todas as idades, tipos, um pequeno microcosmo dentro daquele pequeno espaço de lata. Poucos conversavam, uma mulher de olhos azuis, logo à sua frente, falava com outra a respeito da irmã que trabalhava como enfermeira em um dos hospitais da cidade, da loucura que era o trabalho dela. Dois bancos mais a frente, outra moça, muito jovem, talvez ainda nos dezoito para dezenove, dormia profundamente encostada na janela do ônibus. Na parte de trás do veículo, figuras estranhas e faces fechadas, carrancudas. Talvez fosse apenas uma impressão ruim, no entanto, ela evitava olhar para eles.

O corredor estava lotado, alguns, conhecidos, cumprimentavam com um discreto sorriso, o que era agradável, afinal, Luisa quase não conversava ou interagia com as pessoas, nem mesmo no trabalho. Do lado de fora, a cidade lentamente despertava, algumas lojas abrindo suas portas, as calçadas com bastante movimento, principalmente de jovens, alunos apressados com suas enormes mochilas nas costas. Um casal que passava de mãos dadas chamou a sua atenção, passavam exatamente no momento em que o ônibus parou no sinal vermelho, possibilitando vê-los perfeitamente. O casal, ao primeiro olhar, trouxe uma sensação de felicidade mútua, de admiração de um para com o outro. Foi inevitável para Luisa, que imediatamente traçou uma comparação do casal com a sua vida, o distanciamento do esposo, a falta de carinho, de sorrisos, o excesso de reclamações do marido, mais preocupado com as contas e dinheiro, enfim, inevitavelmente, Luisa fez comparações da sua vida com aquele desconhecido casal que passava. Ela sabia que estava sendo precipitada no seu julgamento em achar que a vida daqueles estranhos era perfeita, no entanto, aos seus olhos depressivos, qualquer casal com o mínimo de afetividade pareciam tão mais felizes do que ela era. Um pequeno fio de lágrima nasceu de seus olhos, Luisa os enxugou com as costas das mãos antes que alguém percebesse.

O ônibus ganhou a avenida Itavuvu, que naquele horário, ficava praticamente exclusivo aos ônibus, tanto os interurbanos quanto aos fretados das muitas empresas nas cidades circunvizinhas. Luisa tentou deixar o comércio para entrar em um empresa, nunca conseguiu, tentou tantas e tantas vezes, com tal ímpeto, mesmo recheando o currículo de cursos, nunca obteve sucesso, até que desistiu.

Trabalhar com o público exigia muito do psicológico, era uma tarefa para poucos. A maioria desistia ou conseguia outra colocação dentro das empresas, em segmentos melhores onde não se deteriorava tanto assim a mente e o coração.

Não demorou para chegar ao local onde trabalhava, um hipermercado no começo da avenida. O ponto, por sorte, estava praticamente em frente ao estacionamento. Luisa deu graças a Deus de sair do aperto, juntamente com ela, outros funcionários desceram, tão compenetrados com os seus celulares que nem mesmo houve tempo para um breve diálogo ou simples, "oi", era a modernidade impondo o seu jugo. Não era diferente em sua casa, o esposo ficava o tempo todo com os olhos grudados no celular. Até na hora de dormir, de contas para Luisa, raramente parava para conversar, fazer amor então, estava fora de cogitação. Luisa caminhava a passos lentos para o interior da loja, teimosas lágrimas que insistentes nasciam de seus olhos.

O dia transcorreu dentro da normalidade de sempre, as mesmas coisas de sempre, sem exceções. Luisa trabalhava no setor do açougue, era balconista, tinha que enfrentar a fúria de uma clientela extremamente exigente. As figuras que se apresentavam do outro lado do balcão eram sempre as mesmas. No primeiro horário, a exclusividade era dos aposentados e da terceira idade, sempre apressados, irritados, colocando defeito em tudo, raras exceções, o atendimento era de fato um tremendo exercício de paciência. A penúria de ter que sorrir, ser graciosa com pessoas grosseiras e sem educação, era um desafio quase sobrehumano, serviço odiável para qualquer trabalhador. O seu turno começava às oito da manhã, com duas horas de almoço, com o turno finalizando às dezessete horas.

Luisa era uma mulher bonita, tinha um corpo belíssimo, cabelos cacheados, seios volumosos, embora ela não enxergasse nada disso, achando-se desajeitada, sem atributo algum, de pouca conversa, até mesmo com os colegas. Luisa era invejada por muitas de suas colegas de trabalho.

Nas duas intermináveis horas que tinha de almoço, quando a maioria dos amigos aproveitando para saírem da loja e descontrair em um barzinho próximo, ela permanecia dentro do refeitório, encostada em um canto específico, em um local onde o gerente havia colocado quatro prateleiras de livros. A leitura, que já era um hábito antigo, fez somente agravar-se com o tempo. Enfiar a cara nas páginas de um livro a fazia esquecer um pouco das angústias que sufocavam o seu coração e maculava a alma.

Do início da tarde após o almoço até o momento de sair foi tranquilo, pouco movimento, quase nenhuma chateação, o que era raríssimo para uma sexta-feira, podendo ser considerado um verdadeiro milagre. De fisionomia fechada, sem esboçar um único e tímido sorriso, Luisa deixou o ambiente animado do vestiário feminino para refugiar-se no ponto de ônibus do outro lado da avenida, ainda que faltando um bom tempo para o ônibus passar. As meninas do caixa eram as que mais faziam algazarra no momento de sair, Luisa odiava com todas as forças cada uma delas, embora não demonstrasse os sentimentos ocultos no coração transpassado pelo ódio, por vezes, fingindo até um sorriso despretensioso, não puxava assunto e tão pouco ficava de conversa com as meninas do caixa.

Solitária no ponto de ônibus, Luisa estava confortável, por sorte, o veículo adiantou-se no horário e estava vazio, o que completou o seu estado de euforia por chegar logo em casa. Os pensamentos rodopiavam desajustados. Só em imaginar a casa, o esposo sempre carrancudo, a falta de afetividade, as constantes reclamações, a ausência de carinho, enfim, o mesmo desejo de chegar em casa era o reflexo oposto de não chegar. A confusão desses sentimentos angustia ainda mais alma e coração. Novamente, as poucas pessoas que estavam no ônibus, conversando animadamente, no primeiro olhar pareciam tão felizes. Por um momento Luisa acreditou fortemente que aquelas pessoas não conheciam a tristeza, a tola imagem de perfeição teimava em sua cabeça.

Quando ela finalmente chegou em casa, o dia foi dando lugar a noite, o sol foi se recolhendo no alto do morro, a escuridão abraçando tudo, estrelas começavam a cintilar no céu.

No olhar de Luisa, a mesmíssima tristeza de todos os finais de tarde, a solidão e o desejo correndo sua alma.

Deitou-se no sofá, ao lado, uma caixa de remédio vazia, um copo de água derramado ao lado da bela adormecida.

Tiago Macedo Pena
Enviado por Tiago Macedo Pena em 24/07/2024
Reeditado em 24/07/2024
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