O povo não precisa saber do Tikkun e da Grande Sinagoga
Capítulo 1 de 1
O esquife fora presente de Leon Lagun, outrora o alto-comissário, em Adventitia, território dominado por remanescentes do Commonwealth, longínqua região fechada, próxima ao litoral, que poucos tinham acesso. Lugan chorava copiosamente aos pés do defunto. Dr. Borges o havia curado de sequentes pneumonias quando retornou a Azul. “Médico insubstituível”, repetia fungando, esquálido e dramático como sempre - desde mancebo. O jovem médico, Biano Kandinsky, não intimidou-se, mas sabia que o teatro de Lugan atraia os olhares dos presentes no velório. A saúde de Azul estava aos seus cuidados agora. Aquela gente vivia avariada fisicamente ou, hipocondríacas, inventavam dores para chamar atenção, às vezes açoitadas pelo medo assolador desde a derradeira epidemia responsável pela depopulação (300 mil habitantes para 200mil). A epidemia estava no imaginário do povo como monstro com o instrumento ceifador, ninguém sequer mencionava explicitamente. O ar era úmido e frio, favorecia a doenças respiratórias, a cada acesso de virose, morria um ou dois de pânico. Dr.Kandinsky oficialmente trabalhou com o velho Dr. Borges por 1 ano, após a formação. Não estava durante a epidemia. Conhecia bem os rostos o fitando na cerimônia fúnebre do extinto. Azul tinham curandeiros, parteiras, dois botânicos também formados no exterior. Não obstante, a alçada de médico clínico e cirurgião, agora, somente o charmoso e dedicado Biano exercia. Natural da Colina Sul, sua formação médica , por dez anos, foi longe de casa, lhe rendeu conhecimentos ocultos do mundo ao largo da ignorância azulista. A autoridade maior, Nathanaelo
Venilli duPont, custeou-lhe os estudos, pois a família era uma das cultivadoras de beterraba preta, humilde, agraciada por um filho inteligente, dedicado e ajudante, quando ainda adolescente, dos curandeiros e também do Dr Borges, no único hospital, antes mesmo da sua formação. Senhor Nathan duPont deixara bem claro: “Aplique todo teu conhecimento, porém cala-te do que viu e soube lá fora. Nosso povo não precisa saber do Tikkun e da Grande Sinagoga. A ignorância os protege e faz bem ao coração, você terá menos trabalho, consequentemente”.
Eu estava na cerimônia, mas não acompanhei o cortejo. O cemitério era “zona proibida” desde a epidemia. Só os coveiros transitavam por lá e viviam estigmatizados, eram como párias. Minhas costas doíam e o trajeto me seria custoso. Biano perguntou-me como me sentia. Minha saúde deteriorara-se, estava velho e cansado, ele escrutou meu diagnóstico. Poderia ser eu o próximo num esquife na caverna de cerimônia fúnebre ou simplesmente me jogariam direto na cova. Nunca fui importante e duPont me olhava de viés: “O velho sabe demais. Maldito mascate”.
Biano me queria bem. Tornou-se belo homem! Alto, de feições dos perdidos escandinavos, olhos e cabelos escuros, olhar inteligente, porte esguio e espírito afável. Entre nós havia amizade e o segredo: “Eu também sabia do Tikkun e da Sinagoga” Como mascate, conheci quem perscrutou o Reino de Zion, a Sinagoga de Satanás e a ameaça após o cataclismo causado por eles para retificar o mundo. Nós éramos a sujeira gentia remanescente: Azul, Adventitia, os Asius, os Arabacis e todos netos dos netos dos sobreviventes, dois milhões ou um pouco mais de seres humanos, padecendo no mundo contaminado pela escuridão. A despeito da ignorância dos Azulistas, alguns sabiam. Dr Kandinsky era um deles.