Azul - Sozinhos na escuridão

Preâmbulo

Geograficamente, não estava desprotegida. A densa névoa ao amanhecer e entardecer deu a região o nome de “Azul”. O azul triste que era engolido pela escuridão. Quase não havia sol. A vila, aos pés da colina, diminuta e protegida por relevos, esquecida e endógena ao muro montanhoso, mesmo nos dias mais frios, agitava-se entre 11h da manhã e 16h da tarde. A taverna recebia o burburinho das pessoas vindas das colinas e habitantes adjacentes ao centro , no vale, aquecidas por doses de vermute das parreiras da região e a cachaça de beterraba preta, da plantação de caules subterrâneos adaptados à terra e ao clima. A beterraba preta era o tubérculo principal que se cultivava em “Azul”. Praticamente a produção local movimentava a economia e a exportação das duas bebidas garantia equilíbrio na balança comercial. Tinha ferreiro, marcenaria, tecelagem, padaria… estabelecimentos utilitários para atender a demanda de 200mil habitantes espalhados entre colinas e o Vale, cujo centro comercial reduzia-se a Cidade dos Azuis, por ser o centro. O rio principal descia em cascatas véu de noiva por alguns pontos jusante, mas tinha trechos do curso que seguia manso, entre pedras em pequenos planaltos até a foz. Se a luz do sol penetrasse, a paisagem se revelaria deslumbrante, tal como, talvez, ninguém sabe, tenha sido um dia, há séculos, antes do cataclisma.

Assim compunha o espaço vital na solitude dos netos dos netos de sobreviventes. O único historiador da região nunca conseguiu convencer com seus parcos registros do passado. Ninguém estava muito interessado em saber como fora o mundo no passado; muitos consideravam lendas criadas por contadores de estórias vindos de outras regiões, os viam desconfiados, falavam com sotaques estranhos, alguns de feições diferentes, comunicavam-se com dificuldade, mas aprenderam a língua de “Azul” para utilidade comercial. Na Taverna, todavia, enchiam a cabeça dos jovens aventureiros sonhadores, os únicos absortos nas suas mitologias do mundo antes da escuridão. Eles traziam agasalhos e mantas para trocas comerciais, os vendiam pelo vale enquanto espalhavam histórias ou “estórias” da civilização avançada perdida, de dias quentes, de luz dominante no céu sem nuvens; azul, mas não do azul da atmosfera que hoje conheciam, feito de névoa cinza arroxeada. Diziam conhecer segredos que ouviram nas incursões alhures na vida de mascate. Quando começou produção local de agasalhos e mantas ao inverno longo e mordaz, os mascates contadores de “causos” perderam espaço comercial. Voltaram com outras mercadorias e mais silenciosos porque “Azul” não estava interessado em narrativas de céu azul. O Azul que conheciam era o que sobreviviam, respiravam, mergulhavam sozinhos, esquecidos, intramontanos.

Conheço intimamente os mascates, fui um deles! Fiquei em Azul após -literalmente - cair do cavalo. Estou há 60 anos entre essa gente taciturna, resignada por silêncio obsequioso, pessoas medrosas e ignorantes, porque intuem tacitamente a ignorância como proteção. Estou velho demais para pretender mudar a cabeça deles. Não me importo com eles. Essa história (ou estória, como o leitor melhor aprouver) não é sobre eles, mas sobre alguns deles, sozinhos na escuridão de Azul.

Cont:

Cibele Laura Oliv
Enviado por Cibele Laura Oliv em 21/07/2024
Reeditado em 19/08/2024
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