O presente
No início, apenas um presente. Frio, sem vida própria, porém cheio de primazia. Presente de aniversário de quinze anos. Escolhido no lugar de uma festa de debutante, sonho de muitas meninas que sonham em ser princesa ao menos por um dia. Como não tinha muitos amigos, aquele presente seria a solução de seus problemas, um amigo exclusivo.
Sem nenhuma cerimônia, o presente tornou-se procurador de suas palavras. Com apenas alguns cliques, programou o seu destino.
Até então, o livro era seu melhor e maior companheiro, logo abandonado num canto qualquer.
Todas as economias da família foram investidas no presente. Prestações a perder de vista. Ele chegou envolvido em uma caixinha tão firme que parecia madeira. A embalagem foi retirada seguindo um ritual de quem despe um parceiro durante as preliminares. A cada parte descoberta, uma sensação diferente. Tarefa que se resolveria em alguns segundos, foi concluída em vinte longos minutos.
O manual explicativo, em quatro idiomas, foi sendo desvendado item por item e aplicado minuciosamente. Pronto, estava configurado, todo personalizado.
Uma janela com vista para o novo, para o futuro, acabara de ser desobstruída. As vinte quatro horas do dia tornaram-se insuficientes para bisbilhotar tanta novidade, sentia-se enfeitiçada pelo seu presente maravilhoso. Não o tirava da cabeça nem mesmo quando estava envolvida nas tarefas diárias. Gastou parte de sua mesada para comprar nova vestimenta. Capas transparentes, com glitter, de personagens e alguns acessórios para decorá-lo. Um sonho realizado. Os pais aprovaram a ideia. Finalmente a filha encontrou distração para lhe preencher os momentos ociosos quando não estava na escola, diziam que era muito sozinha por ser filha única.
Com o passar do tempo, para a pequena debutante, a sua escolha tornou-se responsável pela sua existência. Uma vez ou outra se lembrava do seu antigo melhor amigo livro e buscava sua companhia para uma visita ao banheiro. Entre uma página e outra recordava o seu tempo de “solidão”, sorria demonstrando contentamento.
Durante as madrugadas, enquanto seus pais dormiam tranquilamente, o suave som das teclas soava como música de ninar aos seus ouvidos .
Foi em uma dessas madrugadas que seu destino começou a ser traçado.
Enquanto explorava o seu mundo de novidades, já bastante familiarizada, novos comandos e apps, pulou de sobressalto quando um clique, uma luzinha verde piscante lhe chamou atenção, teve a impressão de que não estava mais sozinha, que não era a única acordada aquela hora. Palavras foram surgindo na sua tela, uma a uma. Assustada, ficou paralisada. Parecia coisa do outro mundo. Deu uma olhada em volta, nada, nem ninguém por perto. Apenas algumas frases que diziam: “Olá, tudo bem? De onde tc?” "Como se chama?" Por alguns instantes imaginou até um tom de voz que lhe parecia grave.
Assustada começou a pensar: "Meu Deus! O que está acontecendo? Não passei meu telefone para ninguém!” Não sabia o que responder. Ficou ali pensando no que lera na pequena tela: “tc...tc...tc...” Bom, não fazia a menor ideia o que aquelas duas letras significavam. Era tudo muito novo. Continuou bisbilhotando. Mas as frases insistiam e a luzinha azul reaparecia: “você ainda está ai?” Muito tímida, como se alguém estivesse observando de longe, responde: “oi”! Rapidamente o desconhecido pareceu-lhe contente com retorno: “Está sem sono também?”Que susto! Era muita novidade para a sua cabeça. Começou logo a imaginar que poderia ser alguém conhecido que soubesse que ela passava a madrugada trancada em seu quarto, escondida dos pais bisbilhotando seu belo presente. Ficou furiosa e resolveu ir dormir.
Nos dias que se seguiram aquilo se repetia curiosamente. Aquele desconhecido parecia estar à espreita para atacar com suas perguntas indiscretas. Como da primeira vez, foi ignorando, uma, duas, três vezes, mas, acabou cedendo. Com pouco tempo já se sentiu a vontade para falar de alguns assuntos que jamais teria coragem de falar com outra pessoa, quando se deu conta já estava lhe contando como tinha sido o seu dia, seus gostos e suas manias, e estranhamente já sabia até que ele tinha terminado um casamento e que ,coincidentemente gostava praticamente das mesmas coisas que ela também gostava.
Agora não se tratava apenas de um desejado presente, tinha conseguido um grande aliado e cúmplice. Sabia tudo que ela conversava com o desconhecido que parecia morar no interior do seu aparelho, que, aliás, já não era mais tão desconhecido! Começou organizar melhor o seu tempo. Tinha um momento que era só para desbravar as novidades, outro para conversar com o seu novo amigo e momentos para interagir com os familiares para que não desconfiassem de seus encontros secretos.
Sua mãe começou a observar que a filha estava mais comunicativa, falando coisas mais adultas... Fato que a deixava tranquila, acreditava que a filha estava crescendo rápido.
Próximo ao natal, há alguns dias que antecedia do seu décimo sexto aniversário, o amigo que vivia escondido no seu aparelho, propôs que se conhecessem, já eram amigos há bastante tempo, brincou dizendo que não era comum ter um amigo sem cara, sem cor e sem cheiro. Precisariam se conhecerem.
Ficou um pouco desconfiada, mas confiava muito em se mesma, ou melhor, no seu aparelho, afinal, somente ela tinha acesso e este não iria sair por aí contando o que acontecia no seu quarto. Outra coisa, já se falavam há bastante tempo, já sabiam praticamente tudo um do outro. Tranquilo.
Ficou combinado na madrugada anterior. Só faltava um plano para sair de casa sem que os pais descobrissem o seu destino. Não foi difícil. Era uma garota muito certinha, nada que inventasse seria motivo para levantar suspeitas. Para todos, foi fazer um trabalho escolar na biblioteca.
Colocou sua melhor roupa, pegou seu ex-companheiro e abandonado livro para disfarçar qualquer desconfiança em casa, deixou o celular na gaveta, para não correr o risco de ser interrompida, e seguiu para o local combinado. Estava muito feliz.
Vestindo uma camisa colorida, calça preta e óculos escuros como ficara combinado, ele se apresentou. Agora o desconhecido tinha cara, tinha cor e logo ela sentiu que também tinha cheiro. Cheirava naftalina, cigarros e outros cheiros, porém, para ela, cheiros diferentes de todos os que já conhecia, coisa que só a fascinava mais.
Foi um grande dia. Experimentaram todas as fases da vida apesar da diferença de idades. Brindaram igual gente grande, almoçaram como quem tinha fome de companhia e tomaram sorvetes igual crianças. Depois de um longo papo e várias promessas, entraram naquele carro conversível vermelho, visto por pessoas que circulavam no shopping, local do encontro, livre de qualquer perigo. Estava empolgada com tanto cavalheirismo. Partira junto com o desconhecido para um lugar mais desconhecido ainda, dela, e de todo o resto que a amava.
Desde então, nunca mais aquela menina foi vista, a única coisa que se sabia é que saiu para um encontro com um desconhecido, informação registrada em seu belo, frio e sofisticado presente. Somente ele traria as pistas que poderiam levar ao paradeiro da inocente aniversariante.
Obs: Fiquem atentos com o que seus filhos fazem no celular quando estão sozinhos.