Trajetória literária (autoficção)

Como se fosse hoje. Ainda dá pra sentir a mesma comichão que aparecia na “boca da noite”, como sua avó costumava chamar o entardecer. Sempre voltava da escola em disparada. Entrava em casa como um “avião”, jogava os livros em cima da cama, corria para o banho, depois, no mesmo frenesi voltava aos livros para fazer a tarefa de casa. Geralmente a irmã mais velha aparecia na porta do quarto para dar alguma ordem, como: esquecer os livros e ajudá-la em alguma tarefa doméstica. Era certo que a mesma não sentia nenhum atrativo pelos livros, preferia as prendas ensinadas pela avó , como: costurar, tricotar, cozinhar, entre outras coisas, desconfia-se que até os dias de hoje ela não faça nenhuma destas prendas domésticas com alguma destreza. Bom, após ficar horas estudando a parte obrigatória, pegava seus livrinhos de leitura proibida. Estava atravessando uma fase da vida em que todo dinheirinho que sobrava dos favores feitos para a irmã, resultava em mais um livro da coleção Bianca ou Júlia. A esta altura já tinha passado pelas fases dos gibis de Maurício de Souza, dos livrinhos de bolso com histórias de faroeste, estes a empolgavam tanto, que às vezes se via sentada num daqueles balcões das famosas tabernas numa cidadezinha desértica esperando ser salva por algum caubói. Passou pela fase das revistas de fofocas sobre os artistas que viviam no Rio de Janeiro, aliás, na mesma época conheceu uma amiga que morou uma temporada na cidade maravilhosa e a tal se aproveitava dessa empolgação para se exibir dizendo que conhecia pessoalmente a maioria dos artistas que admirava nas revistas, é claro que esse fato lhe despertava o sentimento da inveja, chegou a pensar em ser artista! Motivo para duas soltar boas gargalhadas nos dias atuais, uma vez que a amizade perdurou. Passada esta fase fantasiosa, considerada muito boba, entrou de cabeça na fase dos romances de bolso, “Julia e Bianca”. Formou uma grande coleção dos graciosos livrinhos! Trazia todos muito bem escondidos, por dois motivos: primeiro para sua mãe não descobrir que estava lendo livros que só falavam de romance e brigas de amor; segundo, para sua irmã mais nova não os pegar para ler e depois chantageá-la.

Na adolescência seguiu praticamente a mesma rotina: pela manhã obedecendo as ordens da irmã mais velha, à tarde na escola e no final do dia driblando o tempo para ler o máximo possível antes do jantar, brigar com a irmã e brincar de roda na pracinha até a hora de dormir, ou seja, às dez horas da noite, quando se apagava as luzes de gerador da cidade.

No começo da noite, quando sua irmã não interrompia sua leitura aos berros, lia até ouvir o barulho das outras meninas se aglomerando no gramado em frente da casa para começar as brincadeiras. Era tudo acertado na escola, quem conseguisse sair primeiro de casa, iria para o local combinado. Era privilegiada, pois o local ficava em frente à sua casa. Uma espécie de praça, bem larga, toda tomada pela grama, nada que tenha sido feito pelo homem, era uma obra prima da natureza! Quando era época de chuva tudo ficava verdinho, quando época de seca, uma poeira só!

Na expectativa do som da brincadeira, aguardava o sinal, as primeiras vozes. Corria para o jantar, sabia que daria tempo até ouvir todas as vozes num único timbre.

Às vezes, no meio do jantar ouvia a roda já sendo cantada, quando era a sua cantiga preferida, aí vinha aquela comichão. Uma cantiga que exigia formar pares e fazer rodopios no meio do círculo ao som da cantoria. A letra da cantiga: “A carrocinha pegou três crianças de uma vez, a carrocinha pegou três crianças de uma vez, trá-lá-lá que é gente boa, trá-lá-lá que é gente boa!!” A musiquinha soava como delírios aos seus ouvidos. Saia voando para o gramado. A parte chata aparecia quando sua irmã atrapalhava com suas ordens: “pare de brincar e venha lavar a louça do jantar!” Corria, cumpria a ordem e voltava a brincar. Parecia mágico.

Com o tempo, foi entrando e saindo em novas fases e transformações, tanto nos livros quanto nas brincadeiras. Existia uma espécie de sintonia entre as duas coisas.

Quando chegou na fase das curiosidades, descobriu os livros sobre a descoberta do corpo, nesta fase uma horda de monstros a apavorou ! Morria de medo de dividir com alguém as suas leituras. Entre suas descobertas, estava o risco de menstruar a qualquer momento. É certo que a professora já havia falado alguma coisa a respeito, porém, tão restritamente, que não imaginou que seria algo que poderia lhe acontecer. Uma minuciosa investigação sobre os segredos que sua irmã guardava, teve início nesta fase. O objeto investigativo era “menstruação”.

Quando de fato aconteceu, já estava “expert” no assunto, então avançou suas leituras, tudo sobre as alterações no corpo de uma menina. Ali, descobriu também, o porquê de se sentir excitada às vezes que olhava para um corpo nu nas revistas e porque as tranças que sua mãe fazia em seus longos cabelos a incomodavam tanto, sim, claro, já não era mais uma menininha de tranças.

Quanto às brincadeiras, também vivia uma nova fase, já não eram somente frequentadas pelo universo feminino, muitos meninos apareciam para brincar naquele gramado, chamado praça. Filas imensas eram organizadas na calçada, meninas de um lado e meninos do outro. O auge da brincadeira era quando um menino escolhia seu par para fingir que era sua escolhida para “casar”. Ao formar-se o suposto casal, afastavam-se do grupo e ficavam abraçadinhos, como namorados, às vezes rolava um selinho. Brincadeira conhecida como “casamento oculto”. Quando os adultos descobriram a essência da brincadeira, julgaram como inadequada, acabou sendo proibida. Quando alguém era pego brincando, era severamente repreendido. Nunca se ouviu falar dessa brincadeira em qualquer outro lugar ou geração, acho que foi inventada para suprir a curiosidade dos adolescentes da época.

Esta jornada não acaba por aqui, outras descobertas e transformações foram surgindo. O sexo. Sua primeira e maior descoberta do corpo, aconteceu enquanto brincava de esconde-esconde, estirada em um banco de madeira, ao ficar rolando de bruços sentiu uma estranha sensação prazerosa na região púbica. A partir daquele momento entendeu o que tinha lido anteriormente nos livros proibidos. Ficou tão perturbada com a descoberta que começou imaginar histórias entre o órgão masculino (pênis) e o órgão feminino (vagina). Então deu início a sua fase de imitar os escritores. Somente a leitura dos livros já não era suficiente, queria também escrever o seu. O primeiro livrinho que tentou escrever foi uma história em quadrinhos entre o Sr. Pênis e Sra. Vagina. A trama era baseada em uma paixão entre um pênis e uma vagina que não conseguiam se encontrar devido os tabus gerados em torno do assunto. Foram horas e horas ocupada com os desenhos, com a pintura e os textos do seu primeiro livro. Sempre que lhe sobrava um tempinho, estava lá escondida no quarto colocando em prática sua fase escritora e ilustradora. Escondia tudo embaixo do colchão.

Contudo, não foi o suficiente, numa certa ocasião, durante uma faxina, sua mãe encontrou seu tesouro. Ao voltar da escola a confusão estava formada. Sua mãe chorava copiosamente e repetidamente dizia sentir vergonha da sua descoberta, sua filha tinha se tornado uma pervertida. Julgada e condenada, perdeu o direito de ler e escrever fora do âmbito escolar. Um verdadeiro massacre à sua fase escritora. Mas, o que a deixou frustrada mesmo depois de toda a confusão, foi não concluir sua obra.

Depois de algum tempo, não se sabe quanto, após cumprir rigorosamente sua pena, retoma suas leituras. Agora num nível mais avançado, passa por toda coleção Vagalume, fase que lhe rendeu boas aventuras e pelos contos de Clarice Lispector, onde encontrou uma parceira para suas rebeldias. E as transformações foram naturalmente ocorrendo, entre livros obrigatórios na escola e descobertas de novos escritores, foi surgindo uma leitora eclética e assídua. Conheceu Castro Alves com seus poemas marcantes, Fernando Pessoa e seus heterônimos, apaixonou-se por um Pequeno Príncipe e se emocionou com o amor de Dom Quixote pela Dulcinéia.

Avançar fases, tornou-se uma dependência . Encontrava-se completamente dominada pelo vício literário. Avançou para a fase dos Best -seller americanos, pulou algumas casas, chegando no seu favorito, literatura estrangeira. Por um fio não virou “A menina que roubava livros”. Fase que teve contato com alguns filósofos, foi amor à primeira vista. Entrou no Mundo de Sofia e descobriu que a literatura é uma coisa viva e essencial, as transformações não cessam, a busca do conhecimento é constante e revigorante. Seguiu fazendo descobertas, não desistiu da sua fase escritora. Continuou escrevendo, seguindo e admirando grandes escritores. Carrega o sonho de ser lida por dependentes literários.

Foi uma trajetória difícil para a época, muitos tabus circundavam a infância e a adolescência de meninas e meninos. Os pais, vindos de uma geração machista e de muita submissão, não tinham nenhum preparo para orientá-los. Os livros se tornavam grandes aliados e muitas vezes, únicos, na missão de educá-las para vida. Hoje a considera a trajetória mais linda do Universo e a dependência mais necessária para o ser humano!

Feliz de quem caminha sobre livros desde a infância!