Preciosa (Ou Motorista )
Dirigindo carro de aplicativo ela atende dezenas de chamados e aceita mais uma corrida. A noite de sexta-feira está apenas começando. A viagem não será curta e o trânsito está pesado. Serão pelo menos trinta e cinco minutos de trajeto, segundo cálculo do aplicativo.
O dia de trabalho para quem dirige é normalmente longo, desgastante, intenso, para minha supresa ela destrava a porta do carro com um sorriso no rosto e transmite calma e segurança . Pele branca, cabelos longos e castanhos, voz tranquila, não aparenta cansaço.
A conversa começa a fluir, talvez por identificação.
Perguntada ela conta que por atender muitas pessoas tem contato com todo tipo de gente, escuta muitas histórias, conversa com àqueles dispostos a bater papo, transporta também gente que vai quieta, indiferente, que exala tristeza, outros que parecem tímidos.
Abrindo um largo sorriso cheio de simpatia ela comenta que ali acontece quase uma terapia, pois sofá do carro, muitas vezes, se parece com um consultório, onde o passageiro é o "paciente que desabafa" e ela gentilmente os escuta.
Eu, a passageira da vez, muito curiosa gosto de ouvir gente contando suas experiências . Uso bastante carro de aplicativo, poucas vezes encontro mulheres ao volante.
Por qual motivo tantos passageiros aproveitam o espaço sigiloso e restrito da viagem de carro para compartilhar detalhes de suas dores com a mulher ao volante?
Ela não sabe responder minha questão. Ela diz que gosta muito de lidar com gente.
Receptiva e exalando paciência penso que talvez essa combinação de qualidades seja o diferencial
Dos passageiros com todas as idades e condições financeiras escuta desabafos, problemas afetivos, sobre pessoas em delicados tratamentos médicos, leva pessoas até hospitais, quem vai viajar até o aeroporto, com todos procura ser gentil.
Ela demonstra uma serenidade rara.
Disse que , às vezes, percebe lágrimas escorrerem dos olhos daqueles que estão quietos, olhando pela janela, tristes, como se buscassem algum alento. Ela silenciosamente os respeita.
Dirigindo pela cidade e colecionando histórias ela comenta que se deu conta que existem problemas muito mais graves que os seus, por isso ela pouco reclama. Ela prefere agradecer por mais um dia de vida.
A conversa se aprofunda. A sensação é de confiança e sororidade.
Ouvir a história de vida de alguém é uma experiência única, penso eu. Atenta aos faróis ela recorda que sua vida mudou muito nos últimos anos, durante esse tempo ela precisou fazer escolhas que a trouxeram onde ela está hoje.
Suas dores são deixadas do lado de fora do seu carro quando "assume"o volante para mais um dia de trabalho.
Seu jeito sincero de contar sobre sua vida e sobre assuntos tão delicados causou em mim a certeza que ela é uma pessoa incomum. Uma preciosidade.
É possível alguém gostar de dirigir por horas no trânsito de São Paulo? Ela afirma, que adora. Surpresa, com a resposta, abro um leve sorriso.
Que bom que existem pessoas que em meio ao caos da cidade trabalham com tanta dedicação.
Ela acha graça ao ser escutar que adoraria ouvir sobre as situações inusitadas e passageiros inesquecíveis. Cada passageiro deve ser um universo.
Nós, duas mulheres de idades semelhantes, conversando, percebemos que vivemos situações parecidas, que pensamos de modo semelhante e tivemos trajetórias distintas.
Em um mundo apressado onde o contato virtual é a norma a escuta é uma raridade.
À vontade ela comenta que tem sonhos e desejos. Como todos nós ela busca ter momentos felizes.
A corrida termina, mas a conversa, não. Sai com certa antecedência para chegar sem desespero, prefiro assim.
Ao ouvir que eu não estava atrasada a motorista afirmou: "- Vou desligar o aplicativo para terminarmos a conversa".
Com o celular mudo, sem apitar de modo insistente, a conversa é retomada. Surpresa gostei do gesto. É bom ouvir uma história completa.
Ela, assim como eu, não acredita na frase: "tempo é dinheiro". Tempo, na verdade, é sinônimo de vida.
Com o carro branco e novo estacionado é como se uma brecha se abrisse no tempo. Agora, sentada no banco, virada, olhando para trás, eu a escuto com atenção , ela conta sobre seus desejos, dificuldades, relacionamento, as perdas quw teve durante a vida.
Na correria de um tempo tão impessoal a escuta é como um instante de aconchego que permite tratar o outro como ser humano.
A conversa acaba com um abraço meio desajeitado, afetuoso, dentro do carro, os bancos atrapalham um pouco, e um agradecimento verbal por aquela corrida irrepetível, além do desejo duplo de que aquele seja um ótimo fim de semana.