Folhas e Raízes

Essa noite recebi uma visita. Pediu-me para escutá-la. Servi um chá de antigas ervas, para que ela pudesse resgatar a força de sua voz em suas raízes. Após três goles, espaçados por sopros e silêncio, cantou partes de sua história:

-Tenho vivido em lugares que não mais existem. Foi na última lua nova que me dei conta, as portas que abro não são as velhas passagens por onde eu seguia, só agora percebi que perdi o lar que havia e que esse não me abriga e não é, sequer, um lar. De repente, despertei e vi que seguia dormindo por trilhas do passado. Não sei há quanto tempo, mas embarquei com as saudades e afundei em águas profundas e cheias de sal, me fragmentei e com os mortos vivi. Acontece que estava morrendo nessa casa da memória: parte foi destruída por destroços do teto que caía, parte foi tragada pelos vazios de seus cantos, parte engolida pela escuridão da falta de chão, parte foi asfixiada por paredes mofadas, há ainda uma parte que se perdeu em seus labirintos...tenho receio de enxergar o que restou, se souber não me diga, por favor. A verdade é que me prendi; mas não foi em algum lugar inexistente, em alguma velha porta ou passagem, nem na trilha em si, não foi também no barco da saudade ou no fundo do oceano dos mortos, nem na casa que era lar ou na que me desabrigou; passei por todos esses pontos procurando respostas, meus ossos e pedaços, mas só encontrei um imenso vazio - que estava além das montanhas e abismos do Medo. Foi ali que desenterrei, com a própria morte, a Vida, pois escutei o sussurro dos mortos pela primeira vez, dizendo: 'nós vivemos, viva também'; foi nesse momento que o vazio se apresentou com sua composição de sons e cores, havia ali, a dor de cada partida e despedida de algum ser essencial; e também vivia o amor desses mesmos seres; segui com ambos - a dor e o amor; compreendi que as teias que sentia como prisão, eram na verdade, conexão. O vazio não será preenchido e não deve ser esquecido, pois ao ser visto, traz aquilo que há de mais precioso. Fiz dele um mapa e só então pude continuar essa jornada - e aqui cheguei. Vim buscar você. Sinto pela demora, minha preciosa Alma.

Nesse encontro e conto, seus cantos chegaram até mim, os fragmentos foram se conectando e aqui estamos nós, dançamos com o vento e cintilamos com a luz das estrelas e o brilho refletido pela lua crescente. A morte está aqui, constituindo a vida; as raízes nos segurando e nos conectando a terra e aos ancestrais; os troncos e galhos abrindo caminho pela água e pelo ar; e cada folha, inspirando e expirando, leve, o que há. E tenho em nós, alimento para o fogo.

Caso queira escutar uma história, Ser passageiro, sente-se aqui. Beba um chá e cante também.