UTOPIA.

Não foi exatamente como pensavam, tinha-se uma inexata ideia dos acontecimentos, que, simplesmente atropelaram os dias, semanas, meses e anos. Os seres humanos daquela época estavam despercebidos demais, presos em seus universos particulares, não se dando conta da avalanche silenciosa avolumando-se em seus núcleos sociais. A sociedade em questão estava terrivelmente presa em um comodismo sem precedentes, a tecnologia que deveria de ser uma aliada, foi na verdade grande carrasca. Naquele tempo, quando não estavam no trabalho, os homens se ocupavam com coisas banais, supérfluo, por vezes, até mesmo insignificante. Na maior parte do tempo os homens se prendiam em suas ocupações, tediosas e acumulativas. Sempre havia algo por fazer ou que não terminava, sempre tendo que retomar no outro dia. Já as mulheres, diferente de épocas ainda mais anteriores, ganharam grande espaço e força de trabalho, competindo com os homens de igual para igual. Os afazeres domésticos foram sendo terceirizados, porém, mesmo essa ocupação, com registro em carteira, não conseguia encontrar a mão de obra disponível. O bem da verdade é que ninguém queria exercê-la. A decadência de uma época inteira estava do lado de fora das casas, batendo com insistência, pronta para entrar e dominar cada um. É o que de fato aconteceu naqueles dias. A política exercida pelos países naqueles tempos era algo fora do comum, os ricos com o capitalismo selvagem esfolando os pobres, enquanto os governos socialistas pisoteavam a própria população. Foram inevitáveis as guerras, que se multiplicaram sobremaneira. Quando os “Americanos” perceberam que estavam perdendo espaço para os “Chineses” no mundo, usaram toda forma de influência para provocar. Surgia fomes, guerras, doenças, enfim, a caixa de pandora estava aberta. O cavaleiro da morte assolou o mundo, números sem precedentes de covas foram abertas, na verdade, valas enormes onde eram jogados os corpos em decomposição. O mundo tão denso, populoso, aos poucos foi perdendo suas multidões, trocado por um bocado pequeno aqui e acolá. Era necessário reconstruir o mundo, erguer novas muralhas, novas bases, porém, não da forma anterior. Primeiro era preciso reconstruir o pensamento humano, uma nova maneira de governar, a si mesmo primeiramente, a própria casa, somente depois outras pessoas. “Foi necessário destruir o mundo e a vida como era conhecida para que lhe fosse revelado valores que tanto desmereceram”. Era o que se dizia posteriormente. Com o caminhar de uma tartaruga que busca silenciosamente o mar, assim os humanos o fizeram naqueles dias. Pouco a pouco, a sociedade foi remodelada no que é hoje. A história foi reescrita, no entanto, omitiram alguns detalhes importantes, detalhes de milhares de “almas mortas”, tal como Gogol escreveu. O que achavam perfeito, glorioso, dantesco, estava debaixo de erros, os mesmos do início de todas as eras. Eu reconheço que de fato pareça absurda tal ideia, uma sociedade, aparentemente perfeita e única, fadada a trilhar caminhos que levaram ao abismo. Talvez o orgulho e a falta de memória dos governantes, achando-se perfeitos, esquecendo-se dos erros de seus pais, a causa de futuros declínios. Não sei quanto tempo ainda resta, sei apenas que, muito em breve, a sociedade da utopia será desfeita. Muitas cidades do século passado foram dizimadas pelas armas nucleares. Dizia-se muito a respeito de ataques com esse tipo de armamento, porém, ninguém de verdade imaginava que seriam usadas até a primeira bomba cair, e o mundo que se dizia civilizado ruiu. Aquela ameaça que tantas vezes eram ouvidas nos palcos das grandes capitais do mundo, ignoradas por todos, passou a ganhar peso à medida que a violência crescia, guerras se enumeraram, governos de esquerdas eram erguidos, direitos eram tomados. Tudo foi calculado, planejado pela elite dominante para acontecer conforme a agenda. É difícil olhar o horizonte de meus dias, é quase impossível imaginar que nele havia algo belo e grandioso, tão verde contrastando com a cinza visão diante dessa janela. Hoje somos reféns, (alegres) da tecnologia controlada por uma inteligência artificial mundial. Os olhos da tecnologia estão em todos os lugares, por isso até o presente momento eu não citei nenhum nome ou localização nesse texto corrido. Não tenho a mínima ideia de como continuarei esse relato, falar sem citar nomes específicos é primordial para ficar apenas na primeira rede da inteligência mãe, como é chamada. Nesse tempo “utópico”, por assim dizer, a inteligência artificial separa as pessoas em quatro (redes). Sendo a primeira, abarcando toda a sociedade e qualquer coisa criada no mundo virtual. A segunda, na qual estou enquadrado nesse momento em que uso o meu computador para criar essa (obra), é destinada aos que falam de assuntos delicados, porém, sem expor nomes e lugares que são proibidos. A terceira rede é para os que revelam nomes, lugares, datas, tudo relacionado aos assuntos no leque da proibição. A quarta, reservada para os que passam dos limites, descortinando segredos ocultos de pessoas muitíssimo importantes, da cúpula. Enfim, não posso falar mais do que isso, ou vou cair na terceira rede. Como eu disse no começo, quem imaginaria tanto em tão pouco tempo, de fato, nem os maiores especialistas pensou que os “tais”, acenderam a fogueira em plena noite. E por falar na noite... Bom, ela veio, sem estrelas, sem luar, não havia nada além do que deveria estar ali, se é que me compreendem. Permita-me falar de nossa, “perfeita”, sociedade utópica. É assim que a chamamos. Nós temos um único governo mundial, no entanto, os “Preferidos”, governam sobre o que foram as antigas nações. Como os americanos, chineses e tal. Talvez você esteja estranhando a citação, “América”, “China”. Pois bem, a inteligência artificial só permite citar alguns nomes contidos em seus bancos de dados históricos, mesmo assim, quando o fazemos somos direcionados para a segunda rede, como já lhes expliquei. Tudo o que escrevi, o fiz resumidamente, podendo ser encontrado no banco de informações da inteligência. Colocar os pés fora da estrada é um risco. Certamente que esse anônimo escritor não o faz. Tentarei da melhor forma, descrever como é o nosso modo de viver, nossas cidades, esse novo século. Eu sei que posso ser pego, preso, condenado, mas, acredito que esses pés ainda estão dentro do caminho da utopia. As migalhas serão deixadas, cabe aos bons observadores encontrar o caminho de volta para casa. Devo, portanto, falar do passado, o início de algumas coisas, e, para esse fim escolho um método arcaico de escrita. Por esses dias eu encontrei, ou melhor, comprei de um colecionador de antiguidades uma máquina de escrever, desde então, toda a minha narrativa é nela. Se, porventura, futuramente esses escritos cair em alguma mão, benfazeja, queira publicá-lo, por favor. A primeira parte já foi datilografada, sendo assim, me vejo livre da censura da inteligência artificial, do controle absoluto exercido por ele em nome de um suposto mundo livre. Diferente de meus pares, eu não creio nessa utopia absurda de um mundo livre, se é que tal exista. Todos vivem a ilusão da perfeição, da liberdade, da escolha, ilusão de uma sociedade igualitária e justa, quando na verdade, tudo não passa de ilusão. Tolo é quem ainda acredita. Permita-me algumas considerações, no passado, vivenciou-se várias revoluções, dentre elas, a industrial. Máquinas foram criadas, fábricas enormes, operários aos montes. A necessidade de mão de obra era enorme, e é nesse momento que ocorreu os primeiros passos de uma grande mudança. Muitas famílias deixaram o campo aventurando-se nas recém-criadas empresas com seus produtos revolucionários. O comércio ganhou um novo impulso, uma revolução crescia silenciosa em cada pessoa, havia muitas novidades. O que aconteceu foi uma transformação no modo de vida das pessoas, dos grupos sociais, das famílias em geral, no jeito de pensar, de comer, de vestir e agir. Conforme as coisas e o mundo iam evoluindo, o homem sentiu a necessidade de acompanhar essa mudança. Nem tudo, infelizmente, foi para melhor. Isso era de se esperar. A cultura sofreu uma grande revolução, nas artes, letras, canções, em tudo. Vieram as novas armas, a pólvora foi criada, adeus arcos e flechas, o mundo estava pronto para um novo tipo de guerra, líderes se sentiram indestrutíveis, invencíveis, o poder que estava em suas mãos os fez crer que não havia mais limites para as suas ambições, eram como deuses, assim sentiam-se. Nada mais tolo e imbecil, a demonstração dessa burrice se evidenciou em conflitos mundiais. Vidas aos milhares foram ceifadas no primeiro grande conflito, a Europa transformou-se em um grande campo de batalha. Nada mais importava, a pólvora fez do homem o seu próprio apocalipse. Muitos, de fato, creram e disseram que era o fim, e não estavam errados, milhões de seres humanos perderam a vida, pelas mãos de outros que se diziam seres humanos. O desejo de domínio contaminou os corações, manipula as mentes, desfez cresças, era o mal se instaurando dentro do coração. Houve a necessidade de paz. Depois da guerra, desejaram paz, formularam acordos. O tratado de Brest-litovsk foi firmado antes do término da guerra entre os bolcheviques e os impérios centrais. O acordo de Versalhes, assinado em 28 de Junho de 1919 no próprio palácio de Versalhes, pondo fim à guerra entre Alemanha e Aliados. O tratado de Saint-Germain-em-Laye em 10 de setembro de 1919, bem como o tratado de Neuily assinado em 27 de novembro de 1919, o tratado de Trianon, de 04 de junho de 1920, o tratado de Sèrvres e Lausanne de 10 de agosto de 1920, dissolvendo o império Otomano. Enfim, o homem buscava desesperadamente a paz, por fim ao horror, corpos dilacerados, cidades destruídas, vilas dizimadas, crianças mutiladas, era preciso pôr fim a tudo isso. Os anos seguintes deveriam ser trilhados nessa perspectiva, nesse ideal de paz, no entanto, os mesmos erros se repetiram no coração do homem, e o coração do homem desejou repetir as insanidades de outrora. No primeiro dia de setembro de 1939, as tropas alemãs invadiram a Polônia. Apesar das exigências para que se retirassem do território polonês, elas permaneceram. Com a recusa Alemã em cumprir as exigências, Inglaterra e França declararam guerra contra Alemanha, o que desencadeou o segundo conflito mundial. Nem os acordos de paz, nem mesmo os melhores apertos de mãos resolveu, tudo foi para o ralo, um nazista insano se levantou, se fez deus sobre o seu povo, desejava purificar a raça ao seu bel prazer. A guerra se levantou como monstro de vários tentáculos, novamente a pólvora tecnológica se fez presente em novas armas e bombas, tanques e aviões. Era o horror novamente, com a diferença de ser tão mais cruel. O nazista enlouquecido desejava o mundo, para tal, na visão distorcida dele, outro povo deveria ser dizimado, como de fato quase foi. Os meus antepassados sofreram nos campos de concentração, milhões de Judeus perseguidos e mortos cruelmente, histórias foram desfeitas e outra estava sendo escrita com sangue. O mundo estava enlouquecido, novamente a revolução das armas se fez soar, tal como nunca se viu e desintegrou duas cidades no Japão. Eram os primeiros passos do caos. Quem presenciou os fatos daqueles dias pensou que era o fim dos dias, o apocalipse, principalmente quando viram a bomba atômica em ação. Aquele não foi o fim, porém, foi criada a arma do fim do mundo. Os homens e seus sonhos de loucura, o desejo de um acima de todos, sempre foi assim, desde o começo foi dessa maneira. O diabo, no início da criação, plantou no coração da mulher um desejo que não era dela, mas dele unicamente, e esse desejo plantado passou a ser da mulher também, tal desejo custou o paraíso. Sempre foi assim, desde o início. Por que motivos a utopia de hoje crê que será diferente? Pois digo que não será, talvez mantenha a ilusão de perfeição, o que poucos sabem é que mesmo em nossa perfeição, existem muitas coisas imperfeitas que somente os loucos podem ver. Talvez você, leitor fora do tempo, creia que este que vos escreve seja louco, de fato é. Se você não se atentou nas entrelinhas... Sim, este escrito viajar para fora do tempo, retornando no século 21. A viagem no tempo, impossível em seus dias, é nosso maior e mais devastador tesouro.

Os algozes de branco retornaram, no calabouço dessa mente, prosseguir o relato em outra oportunidade...

Alberto A. Lispector.
Enviado por Tiago Macedo Pena em 29/06/2024
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