A CADA PASSO.

Eu nunca falei nada do meu passado, nenhuma palavra, nada, exatamente nada, nem uma vírgula, assim eu pretendo permanecer pelo resto da vida, em completo, abençoado e absoluto silêncio.

Sempre fui introvertida e todos sabem disso, de quando eu era ainda criança, quando ainda não tinha compreensão da vida, sempre devotada ao silêncio, a cláusura, desde quando eu era apenas uma menina desajeitada e de cabelos desarrumados, roupas rasgadas.

Pouco são os que me conhecem de verdade, no íntimo, talvez alguma amiga ou amigo das antigas ainda estejam vivos, porém, duvido muito, por certo, a vida louca que levavam ceifou a todos. Era para eu ter o mesmo destino. Das que conheço já não estão entre nós, drogas, assassinatos, acidentes, bebedeiras, enfim, dos amigos mais próximos também, a Martina aqui é a última da linhagem, devo isso graças ao bom Deus, por enquanto viva, afinal, ninguém nunca sabe quando será o seu último dia...

Me permita uma breve apresentação.

O meu nome é Martina Santinelle, atualmente, residente dessa grande cidade que se tornou Sorocaba. Perdoe-me se por alguns momentos eu perder o foco e me desviar do assunto principal, o que me acontece frequentemente, quanto a isso, já não há solução. Alguns colegas de quando fiquei na ala psiquiátrica me disseram que isso foi resultado das sequelas de tantos anos usando drogas pesadas, graças a Deus, drogas nunca mais, fiquei livre desse mal.

Atualmente, ou melhor, momentaneamente resido no bairro Laranjeiras, digo isso pelas constantes e intermináveis mudanças, acho até que tenho linhagem cigana. Embora a minha família por parte de mãe tenha descendência Italiana, a do meu pai é um completo e absoluto mistério. Eu não sei nada a respeito de nenhum familiar de papai, e não há quem conte uma linha da história da família.

Como eu estava falando anteriormente, Laranjeiras é minha casa, por enquanto, não é um bairro ruim. Já morei em vários lugares em Sorocaba, São Bento, Jardim São Guilherme, Santo André, Esmeralda, no centro, tantos outros que se eu for mencionar aqui iremos longe. Eu moro sozinha, solteira, por enquanto, não quero me agarrar a nenhum homem ou compromisso sério. Os meus pais são falecidos, tenho três irmãs, cada uma em um canto do Brasil. Por enquanto estou trabalhando no centro da cidade, em um Supermercado, já passei por vários deles. Não é dos melhores empregos, confesso, a falta de opção de uma vaga em empresa me obriga a sorrir e aceitar sem reclamar muito.

Talvez seja o passado que me condene.

É manhã de sábado...

Infelizmente, manhã de sábado, havia movimentação a todo o vapor , desde as primeiras horas até o perder da madrugada. Levanto-me apressadamente, os ponteiros do relógio caminham acelerado pelas primeiras horas no romper da aurora. O meu tempo é curto, arrumo a cama, me troco de roupa, gosto de roupas apertadas, que mostra bem as pernas e braços e as muitas tatuagens que tenho pelo corpo, minha colega fala que pareço um gibi ambulante.

Não me demoro para terminar, logo mais o ônibus passa, o meu ponto é o segundo no laranjeiras, até chegar no centro da cidade ele ficará lotado e dará muitas voltas. Não conheço quase ninguém por aqui, apenas uma moça que pega o ônibus lá no terminal em frente a coop, ela trabalha no mesmo mercado que eu, é operadora de caixa, não conversamos muito, aliás, eu não converso quase nada e ninguém, é um terrível privilégio ser assim .

Foi eu chegar no ponto e o ônibus apontou na avenida, desta vez não o perdi por um minuto. É sempre assim, a semana inteira cheguei em cima do horário, aliás, a pressa não faz mais parte de mim, nos últimos tempos não tenho me importado com o próprio tempo. A verdade é que cansei de ficar correndo atrás de tudo e não chegando a lugar nenhum, minha vida sempre foi assim, correria para tudo, principalmente quando se tratava de mudança... Meu Deus! Não gosto nem de lembrar, me dá arrepios, nervoso, o começo de ano é sempre marcado por mudanças, jurei para mim mesma que no ano que vem não vou cometer essa loucura.

Sentei no lugar de sempre, exatamente no meio do ônibus, ele ainda está vazio, por enquanto.

Seguimos viagem, virando por uma rua estreita próximo de um córrego fedorento, subindo por outra rua mais larga, o ônibus para, uma mulher e um homens sobem, roupas de empresas, crachá no peito, pelo horário, entram as oito da manhã, para entrar às sete já estão atrasados.

O ônibus segue apressado, ganha a avenida Itavuvu, corredor do BRT, bem melhor para os motoristas. A próxima parada é no terminal em frente a Coop, o ônibus para, dessa vez uma multidão de pessoas entram, mulheres, homens e jovens. Entre tantas pessoas, minha amiga é uma figurinha apressada para se sentar em algum lugar, ela nem me viu, sentou-se dois bancos a frente, também quieta, observando tudo, assim como eu.

A cidade já despertou, os seus moradores estão atônitos, eufóricos, a maioria de folga, boa parte das empresas não trabalham no sábado e domingo. Eu não tenho esse privilégio, aliás, quem trabalha no comércio é desprovido completamente de privilégios. Às vezes eu tenho inveja desse pessoal, em seus carros bonitos, enchendo o carrinho de besteiras, carnes, cervejas, de tudo o que os olhos se agradam.

O ônibus segue acelerado, vejo lojas de portas fechadas, antes, comércios com seus lucros, clientes, rendimento, agora, apenas uma porta fechada juntando poeira, sujeira, lugar preferido para os ambulantes. Por falar neles, os moradores de rua aumentaram três vezes mais desde o começo desse ano. O novo governo veio cheio de promessas, falando um monte de coisa, faria tal e tal... Grande decepção, nada mudou, para dizer a verdade, antes estava melhor. Não sei onde estava com a cabeça de acreditar que ia mudar, perca de tempo ter que votar.

O ônibus segue lotado, pessoas espremendo-se, algumas descem, outras sobem. Por isso escolhi o meio do ônibus, na hora de descer é só se levantar, dar no máximo um passo e pronto. O meu destino não está longe, porém, tenho que descer no próximo ponto e caminhar um pouco. Eu poderia sim descer exatamente em frente ao lugar que trabalho, mas, vai aí uma maluquice da qual não consigo largar. Prefiro descer alguns pontos atrás, e foi o que fiz, gosto de ir na caminhada, somente para observar as pessoas, multidões de seres humanos, clandestinos, com seus destinos diante dos olhos, vozes anônimas e solitárias como eu.

Ando lentamente, quase a contar os meus passos, tenho tempo de sobra, ainda que não o tivesse, não me importo, pelo menos hoje não, às vezes sim, sou um pouquinho apressada, mas, não hoje, não agora. Quero observar esses seres estranhos, chamados de humanos, com suas manias e esquisitices, com os seus jeitos e trejeitos tão peculiares. Cada um com sua particularidade, com o seu modo tão diferente, único, embora certas atitudes pareçam nos igualar, somos diferentes demais, talvez seja esse o ponto, de encanto, desencanto, de mistérios, simplicidade. A linha que separa insanos de normais é por demais tênue, a tal ponto que se torna imperceptível ao primeiro olhar.

Sábado, sol, temperatura subindo.

É um dia único, o mesmo dia para todos, porém, com diferentes percepções para cada um.

Muitos amam o sábado, outros odeiam. Eu, bom... Eu não sei exatamente onde me encaixo, vai depender muito da situação. Hoje por exemplo, estou entre a cruz e a espada, perdida em tantos pensamentos, situações muitíssimo complicadas. Para quem me observa do lado de fora, certamente que não notará coisa alguma, no entanto, se a mesma pessoa observar do lado de dentro, terá uma tremenda surpresa. A vida é mesmo assim, complexa, e por isso é tão extraordinária. Continuo a minha caminhada, como se fosse a última vez, como se eu estivesse indo para a própria morte. Eu sei que é exagero, reconheço, o que não posso e jamais farei e fingir ser o que não sou. Já me acostumei com essas loucuras. Caminho devagar, como se eu não quisesse chegar ao meu destino. O bem da verdade é que eu não quero, nunca desejei, aliás, finjo que gosto, sorrisos falsos, aperto de mãos, e o coração como brasa do lado de dentro.

Observo aqueles que daqui a pouco estarão no mercado, me observando trabalhar, me amando ou odiando a depender da situação.

Diante de mim, seres desavisados do caos mundano, indiferentes ao que se passa no globo, nas próprias vidas, aliás. Embora, entre estes que figuram a passos largos, caminhando tão apressadamente, olhando para todos os lados como se desconfiasse de qualquer coisa, esses, talvez mais atentos ao que se passa. O mundo não é mais o mesmo de outrora, estes ambulantes trabalhadores do acaso, assim como eu, trazem na alma dores e aflições, desespero na maioria das vezes, uma bomba relógio pronto a explodir, sem se importarem com as consequências.

Estou diante do semáforo, sinal vermelho para os pedestres, embora não haja veículos no momento, muito atravessam assim mesmo, é a tirania do relógio que os oprimem, a todos nós na verdade. Vejo senhoras, idosos, tão apressadas quanto esses jovens descuidados. Veículos surgem repentinamente, um quase acidente, buzinas, xingamentos.

É apenas mais um sábado de desespero.

O sinal fecha para os veículos, abre para nós, agora sim atravesso, a passos curtos, sempre atenta. Na outra esquina figura o meu forte Bastiani, meu cárcere diário, aberto a visitas todos os dias. Minhas amigas dizem que estou ficando louca, que falo sozinha, imagino coisas que não existem, será?

Vivemos dias tão complexos que se não tivermos certa dose de loucura, é praticamente impossível de se viver.

Trabalho há vários anos no mercado, não era algo que eu queria, praticamente ninguém quer, porém, é o que tenho para o momento.

Atualmente, graças a muita insistência, deixei de ser balconista para trabalhar como repositor. Fico responsável pelo corredor de higiene pessoal, tendo toda responsabilidade de manter o correr abastecido, precificado, perfeito. Não é tão simples, olhando assim, parece muitíssimo fácil de ser feito, mas, acredite, não é. A diferença para mim é não ter mais que sorrir forçadamente para clientes ignorantes na frente do balcão, isso por si só fez toda a diferença.

Trabalho tranquila e silenciosamente, pretendo permanecer assim. Para mudar, só se for para algo melhor, contudo, esse melhor está terrivelmente distante.

Sou uma das últimas a chegar, entro pelo estacionamento, daqui a pouco o mercado vai abrir. Me troco, pego o meu lanche e vou para o refeitório, tomo o meu café tranquila, observando a correria das colegas, dos meninos do açougue, meu Deus! Só em lembrar me dá agonia. Às meninas do caixa também, sempre na correria. É outro setor que não me interessa nem um pouco, o seu Carlos, nosso gerente, já me ofereceu uma vaga no caixa, eu ganharia um pouquinho mais, não aceitei. Prefiro mesmo permanecer onde estou, o salário não é muita coisa, o que compensa mesmo é a tranquilidade de não ter de trabalhar diretamente com o atendimento, face a face, salvo vez e outra alguém que pede uma informação de algum produto, perguntando de preços e promoções, coisa básica, três ou quatro palavras no máximo. O restante do dia é para reposição, colocar preço, só, nada mais do que isso. O oitavo corredor é de minha responsabilidade, o meu domínio, minha área. Não tenho que sair para mover uma palha em outros corredores, pelo menos é assim aqui no Correia.

Antes do mercado abrir, faltando cinco minutos, bato o meu ponto e vou para a frente das minhas prateleiras, graças a Deus, poucos produtos mudaram o preço, Shampoo, sabonete, pasta de dentes, talco e outras coisinhas. Coisa fácil e rápida de ser feita.

O mercado abre, de início, na primeira hora o movimento é tranquilo, apenas o pessoal da terceira ideia, senhores e senhoras que aproveitam para fazer suas coisas antes que isso daqui vire um formigueiro ambulante. A maioria vai direto para o açougue, como uma bala, tem pressa, não querem perder um minuto.

O meu dia segue tranquilo, silencioso.

Todos estranharam a minha mudança, fizeram mil perguntas, questionaram tudo. Eu, simplesmente sorrio, falo duas ou três palavras e nada mais.

A verdade é que eu me cansei do meu outro eu.

Aquela mulher estressada, sempre embriagada, correndo pra tudo que é lado, quase tive um infarto de tanto estresse, parei no médico várias vezes, da última, o doutor disse que se eu não parasse morreria. E foi o que fiz, passei dois dias por semana na psicóloga, foi difícil mudar, mas, consegui.

Agora vivo um dia de cada vez, aos poucos, a cada passo, literalmente, a cada passo…

Tiago Macedo Pena
Enviado por Tiago Macedo Pena em 27/06/2024
Reeditado em 27/06/2024
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