Momento de luto

Foi por volta das 15h que André recebeu a ligação de Vinícius. Fazia tempo que não ouvia aquela voz brincalhona, cheia de astúcia e alguma ousadia. Eram inseparáveis na adolescência, porém, como tudo na vida, aquela intensa e cúmplice amizade foi dando lugar às preocupações cotidianas, as responsabilidades e compromissos cada vez mais importantes e menos descontraídos. Aquela voz era de um homem sério, como mais sério que ele próprio era a mensagem que trazia ao amigo de velhos tempos.

- [,,,] Raissa morreu há um mês... eu sinto muito meu amigo... fiquei sabendo que ela morava aqui perto por um cliente... bem... não sei como você receberá isso, mas o cliente é o viúvo. Procurou-me para pedir orientações sobre o seguro de vida da esposa. Foi ao ver a documentação que percebi se tratar da Raissa... Quanto tempo fazia? Dez anos?

- Doze - responde André ainda processando aquela informação-.

- Pois é... então eu pensei muito se deveria desenterrar esse assunto em você, meu irmão, que amo de coração, mas conclui que seria injusto não fazê-lo... queria eu que esse cliente não tivesse entrado pela minha porta...

- Obrigado por me contar...

- Continua praticando esportes?

- Depois nos falamos Vinícius. Preciso cuidar de algumas coisas.

André retorna o celular para o bolso, se ajeita na cadeira enquanto vê o garçom andando de um lado para outro como como se algo de muito importante teria deixado passar. Na mesa ao seu lado um casal discute sobre o horário de amamentar o filho.

André volta o olhar para a mesa, retira o celular do bolso... para quem ligaria? Com quem poderia conversar, talvez por para fora o que estava sentindo? O garçom pousa uma xícara com café diante dele, dois saches de açúcar e uma pequena cesta com quatro pães de queijo.

Raissa estava morta? Como poderia? Como? Naquele momento? E agora? O que fazer? Como viver o resto de seus dias com a certeza que jamais poderá reencontrá-la, apagar as manchas do passado e viver tudo que...

Eram muitas emoções vindo a tona. André sente sufocar, o ar não chega aos pulmões, seu coração dispara. Ele se levanta. É melhor sair de lá, respirar ar puro antes que sinta a sanidade deixar-lhe como Raissa o deixava naquele momento.

Comprou um maço de cigarros. Malboro vermelho, não porque gosta, mas porque precisava de algo realmente forte.

Raissa morreu.

Uma mensagem faz seu telefone vibrar. Era Vinícius enviando o endereço do cemitério que ela estava.

Sim, pelo menos ele poderia se despedir dela.

Primeiro ele precisava cancelar todos os compromissos de trabalho que tinha para aquele dia, depois passar em casa, tomar um banho e buscar forças para ir ao encontro de Raissa.

Pediu um carro. No caminho entrou em contato com Suzana, pediu-lhe desculpas e com muita cordialidade, para que o motorista não pensasse que levava algum maluco, usando uma voz pausada de quem pensa no que está falando, diz que está passando mal, que logo voltará ao trabalho, mas que por hoje tiraria o resto do dia de folga. Ele sabia que não lhe prejudicaria a ausência do escritório. Seu trabalho era perfeitamente executado em, no máximo, três dias. Era comum ele sair para caminhar e tomar aquele café na rua do O... todos os dias. Fizera isso nos últimos nove anos. A eficiência de André só não era superior a incapacidade daquele escritório organizar-se melhor.

André pensa nisso: em como as coisas são feitas para serem ineficazes. Qualquer bom observador perceberia que um profissional faria facilmente o trabalho dele e seus dois colegas de setor. Demoraram muito para descobrir que uma semana de quatro dias de trabalho é mais que suficiente. E nem tão cedo o que a ciência desvenda tardiamente sua empresa tomará como modelo porque lá tudo é diferente, dizem.

Chega em casa. Toma banho, põe sua melhor camisa, uma branca, calças escuras e jaqueta preta além do melhor perfume, o que Raissa gostava. Beija Manoela, sua filha e depis despede-se da esposa, Isabella, que nada percebera de diferente no marido. Um casamento em crise faz parecer todo o silêncio e ausência um presente dos céus.

O porteiro o vê saindo apressadamente até a garagem. Pela câmera o assiste subindo na moto que há tempos não usava. Foi com Raissa que andou nela pela última vez, o porteiro lembra. O que teria acontecido?

Foi no final da tarde que ele chegou ao cemitério de J...

Agora era só ir até Raissa.

Foi hesitante que ele se aproximou de sua amada. Raissa estava dentro daquela estrutura de pedra. Uma foto que ele logo identificou que foi tirada na época que eles eram noivos, na festa de aniversário da prima Vânia, estava diante dele. Amada mãe e esposa estava escrito na lápide. Piegas mas para a romântica Raissa que melhor homenagem? Sim... ele teria escolhido a mesma foto e a mesma frase. Depois sentiu a raiva subir-lhe porque percebeu que o viúvo optou pelas mesmas escolhas que ele teria feito.

Lembrou do primeiro ano juntos. Dos momentos que viveram, das brincadeiras e das várias brigas. Algumas sem o menor sentido. Se amavam e isso significava um certo tempero de ciúmes naquela relação. A paixão foi crescendo, mas a vida não seria tão suave para o casal. Raissa engravidou ainda durante o noivado. Decidiram casar-se antes do nascimento da criança e no mesmo período André iniciou na empresa que está até hoje. Ganhou muito dinheiro e com ele uma vida cheia de tensões e responsabilidades. Essa realidade afastaria Raissa que era uma mulher sensível e doce, ao mesmo tempo que transbordava energia, timidez e medo.

A realidade os afastou. O vislumbre da vida que aquele cargo o proporcionava tornava aquele rapaz leve e bem humorado numa pessoa séria e fechada.

A escuridão de um chocou-se com a luz do outro. O rosa e o branco de alguma forma se tornaram cinza. André queria uma posição social, Raissa, queria ser feliz.

É como não poderia deixar de ser foi na crise do casal que entrou Isabelle. A bela moça era compartilhava das ambições de André. A dedicação ao trabalho os aproximava. Logo todos no escritório perceberam como ambos funcionavam bem trabalhando juntos. Isabelle e André se conectaram de maneira surpreendente. O trabalho fluía ente eles gerando um poderoso laço enquanto o laço com Raissa se rompia.

Não demorou para que ambos vissem mutuamente os parceiros ideais. O amor cedeu lugar a ambição. O mesmo propósito tornava a relação de André e Isabelle mais sólida. Pareciam mais maduros enquanto suas almas perdiam o brilho.

A traição aconteceu num noite de chuva. O inverno começara uma semana atrás. Era mais uma noite no escritório quando Raissa trouxe um lanche para André. Pela porta a moça olhou através do vidro...

Isabelle e André se beijavam como se aquilo os arrebatasse para um outro mundo, onde ela, Raissa, não existia.

Eles se separaram. Raissa nunca contou o que viu naquela noite, mas ficou satisfeita de ter ouvido dele a verdade. Não era para acontecer mas aconteceu, foram suas palavras. Raissa apenas concordou. Com a alma cheia de tristeza e dor aceitou a separação.

Mas o que funcionava dentro do escritório se mostrou ineficaz fora dele e o casal Isabelle e André com o tempo foram se tornando meros colegas que moram juntos. A filha Manoela, agora com onze anos, era a única razão que os mantinha juntos. Como uma pena aplicada pela imprudência de ambos. O casal não se importava com felicidade no sentido espiritual da palavra. Eles tinham de tudo, nada faltava.

Para André no entanto faltava a felicidade, o amor, a alegria de amar e sorrir, faltava Raissa. Mas foi apenas quando Manoela completou quatro anos, que ele chegou onde queria chegar no escritório, que percebeu que de verdade não conquistara nada do que realmente importava. Sentia-se só... logo veio o alcoolismo, o tabagismo e a ansiedade. Ele se tornava aquilo que sempre quis ser um homem de sucesso, apenas pagou o preço com a própria alma.

Raissa passou os dias se recuperando. Se sentia livre de um homem que trocara a felicidade pelo status ou que talvez tenha ressignificado felicidade em sua vida. Sentia que aquilo podia ser um processo natural do ser humano. Tentou conformar-se. Em parte conseguiu.

Conhecou Lucas com quem casou e teve dois filhos. Não era tão diferente de André, aliás eram até bem parecidos com a diferença no equilíbrio entre vida e trabalho. Lucas não era tão ambicioso e isso não era exatamente um charme para ela. Mas significava que teria atenção.

Diferente de André que até aquele momento não percebera que se contentava com pouco Raissa tinha conhecimento cristalino da situação em que se encontrava. Era um mais ou menos mas para mais, como ele definira o marido para a prima Vânia.

O tempo fecha. Sim, tinha que ser assim, com chuva. O cenário perfeito para uma despedida triste e cheia de arrependimento e dor. A água vai molhando a jaqueta, escorrendo pelo rosto e encharcando a camisa branca. André sorri. Sempre dramática ele pensa. Como se aquela chuva tivesse programada para cair quando ele estivesse diante de sua lápide.

O sorriso cede lugar as lágrimas. André cai sobre os joelhos. A chuva fica mais forte.

Agora ele pode chorar.

- Raissa... o que fizemos de nós?

John Raskólnikov
Enviado por John Raskólnikov em 27/06/2024
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