A qualidade se foi e não pretende retornar

Era um apartamento agradável, sem dúvidas. A luz entrava preguiçosamente pelas frestas das cortinas, evidenciando as partículas de poeira a meu redor. Irônico. Quando mais novo, imaginava observar este mesmo cenário deitado ao lado de meu grande amor, com suas mãos belas e suaves acariciando um homem belo, capaz e otimista. No momento, entretanto, ela acariciaria um homem feio, rancoroso e decepcionado.

Não havia um motivo específico em relação ao dia. A ideia já se rebatia em minha mente como uma bola em máquina de pinball, com a única diferença de não havia saída alguma. Como as verdadeiramente grandiosas ideias, esta nunca desapareceria. Inteligente o suficiente para compreender, nada mais sensato do que acelerar este processo que se deixado ao acaso demoraria demais e causaria estragos demais.

Não que estivesse tudo bem. Muita coisa já havia sido obliterada, como todas minhas relações, todos meus sonhos, toda capacidade de amar. Talvez fossem traumas, talvez fosse o construto social agindo de forma a me tornar uma engrenagem há muito ultrapassada em sua utilidade.

Por sorte os meios ainda eram razoavelmente simples. Um pouco de óleo, uma bala e o conhecimento necessário para montar e fazer a manutenção de um instrumento. Era necessário somente não ser estúpido ao extremo e encaixar o local de saída onde, com toda certeza, faria o estrago procurado.

Ainda neste apartamento agradável era-se possível ouvir até mesmo passarinhos cantarem. Ou as vozes daqueles espíritos que me diziam para parar, seguir em frente, acreditar que algo ainda existe no caminho. Ambos eram irritantes e emocionantes, de certa forma. Com minha psiquê demolida, estava convencido de que finalmente havia enlouquecido, por isso enquanto me preparava, meu rosto estava sempre com um sorriso bobo à mostra. Não havia ninguém que pudesse interromper o ritual e mesmo que fosse diferente, não havia ninguém que quereria.

Com paciência infinita queimei todas as pontes e destruí todos os barcos. De forma deliberada feri e afastei todos que me amaram. Mas, afinal, não era problema. Não mais. Porém não pense que não tentei, ainda que da forma mais deturpada possível, perambular saltitante neste poço fedido chamado de vida. Eu era apenas inapto. Eu era apenas incapaz de amar. Eu era apenas mais um infeliz em milhões que recorria a saída covarde.

Honestamente, não sabia o nome da ferramenta. Era bela e isto bastava.

Finalmente, com um último gole de uísque pude saborear algum resquício de humanidade.

Agora era hora de partir. Da luz, da sombra, da solidão, da alegria, da monotonia e do fracasso.

Finalmente, um misericordioso momento de sucesso.