PERIGO CONTROLADO.

Levar cedo para trabalhar era sempre dificultoso para ela, o ritmo intenso desde o início da semana sugava todas as suas energias.

Madrugada de sexta-feira.

A camisola fina cobrindo o corpo, a brisa da madrugada embalando o sono, abruptamente interrompido com o toque do celular despertando. Júlia ergue-se assustada, porém, ainda permanecendo sentada na cama, a vontade era de deitar novamente, não ir trabalhar, pegar um atestado no P.A, inventar qualquer desculpa, só não fazia pela trabalheira que teria, ônibus, distância, a demora para ser atendida, perderia o dia todo e não valeria a pena o esforço.

O esposo roncava ao lado, nem percebeu ela se levantando, ele trabalhava no turno da tarde em uma das empresas da cidade, desfrutava do luxo de dormir o quanto quisesse.

Júlia reuniu o restante de coragem que ainda tinha para sair do conforto da cama, espreguiçou-se sem o mínimo de vontade de levantar, tateou o chão com o pé direito procurando o chinelo, calçou-os, levantando-se a passos trôpegos foi até a janela semi-aberta, de fundo com o quintal, fechou-a, a escuridão ainda cobria tudo.

Júlia foi até o guarda roupa, acendeu a luz do abajur, despiu-se da camisola ficando completamente nua de frente ao espelho, ficou a mirar o seu reflexo, os seios fartos redondos, as pernas grossas, corpo magro, bunda empinada, embora na casa dos quarenta, desfrutava de uma beleza única.

Vestiu-se rapidamente, não tinha o luxo de perder tempo, as horas eram traiçoeiras, os ponteiros não perdoavam. Foi para o banheiro, escovou os dentes, penteou os longos negros, fazia tempo que ensaiava ir ao salão, o dinheiro curto era apenas para as contas quase nunca sobrava para um tostão para o lazer.

Na cozinha, enquanto o café não estava pronto, procurou na geladeira o pedaço de torta que havia feito no dia anterior, colocou-o sobre a mesa. Júlia trabalhava no centro da cidade, em um açougue, embora gostasse da profissão, já estava cheia de clientes chatos, na maior parte das vezes arrogantes, sem educação, havia aqueles que valiam a pena serem atendidos, eram poucos. No desejo de sair do açougue, Júlia havia mandado currículo para todas empresas da cidade, nenhuma chamava, queria sair logo, mas não sabia como, pedir conta estava fora de cogitação.

Terminou de tomar o café, guardou o restante da torta para o esposo, lavou a louça que sujou. Foi ao banheiro pela última vez, escovou os dentes novamente, perfumou-se, mesmo contrariando o que o chefe dizia, "Quem trabalha com perecíveis não pode usar perfumes fortes", toda a semana era a mesma ladainha, de nada adiantava, Júlia era teimosa. Pegou chaves, bolsa, celular, crachá.

A rua ainda escura pela falta de iluminação de alguns postes, pouca movimentação, apenas aqueles transeuntes apressados, como ela, não queriam perder o ônibus e chegar atrasado no serviço. Saiu a passos largos, o ponto era próximo, na rua detrás, o horário estava apertado, logo o ônibus passaria, linha Laranjeiras sentido centro. Virou a primeira esquerda, a luz do poste havia queimando, por sorte, a rua curta dava de frente para a avenida Edgard Proença, o ponto era perto. Apertou ainda mais os passos, não queria ser uma possível vítima de assalto em uma rua escura.

No ponto, figuravam as mesmas pessoas de todos os dias, trabalhadores incansáveis, em suas jornadas e labutas frenéticas de pequenos afazeres universais, enfrentando as suas guerras diárias. Júlia apenas conhecia os rostos mas não sabia o nome de ninguém, tinha apenas noção de onde trabalhavam baseando-se nos uniformes, nunca puxou conversa.

O ônibus surgiu, cada um buscando o seu lugar preferido, o veículo saiu apressado, a cada ponto, uma multidão de pessoas. Júlia havia escolhido um lugar próximo a saída, para facilitar no momento em que chegasse no centro da cidade. O corpo ainda pedia cama, aconchegou-se na poltrona macia, da janela, vislumbres da cidade, imagens ficando para trás em ruas sem movimento. Sorocaba ainda dormia, o monstro logo despertaria esticando os seus longos tentáculos a envolver todos em seu pequeno universo, fazendo-os reféns das garras dessa megalópole desenfreada que se torna a cidade.

Júlia nem percebeu quem se sentou ao seu lado, o rosto virado para a janela, apenas observando, casas, lojas, carros, moradores de rua, vidas aprisionadas em correntes invisíveis.

O ônibus chega ao destino, antes de adentrar no terminal Santo Antônio, Júlia desce, o açougue em que trabalha fica algumas ruas acima, relativamente perto. Olhou as horas, seis da manhã, estava adiantada, como sempre, Júlia odiava atrasos, não suportava perder tempo, ter que ficar esperando era inadmissível. Passos apressados no meio da multidão cabisbaixa, desatenta, homens e mulheres inquietos, trabalhadores dividindo as mesmas dores, medos e incertezas, seguindo caminhos de solidão, porém, dividindo sentimentos igualmente universais.

Júlia era a primeira a chegar no trabalho, sempre a primeira.

Ela tinha as chaves do portão dos fundos, cada funcionário tinha a sua, como era a mais experiente da turma, com mais tempo de empresa, a responsabilidade de preparar a abertura do açougue era dela. Dois outros funcionários entraram dez minutos para as sete, eram balconistas, apenas atendendo sem a responsabilidade de preparação de balcão ou auto serviço. Outros dois entravam em horários diferentes, um às nove, outro às dez, horários horríveis e odiosos, havia o pessoal da tarde, do fechamento. Júlia tinha o privilégio de sair às quatro da tarde, raramente passava do seu horário, salvo situações muitíssimo extraordinárias.

A rotina era sempre a mesma, todos os dias, semanas, meses e anos, sem nunca mudar, sem nunca parar, os rostos de sempre, reclamações que já havia até decorado.

Júlia entrou apressada, faltava cinco minutos para o seu horário, bateu o ponto primeiro para depois se trocar, registrou a entrada faltando dois minutos, por pouco não se atrasou, os colegas de trabalho diziam que ela precisava urgentemente de um tratamento psiquiátrico, a neura com o relógio piorava a cada ano.

Ponto registrado, foi até ao armário para se trocar, o uniforme sempre limpíssimo, embora numerados, três pares de camisas e calças, cada dia um número, assim, evitava-se trabalhar sujo e com uniforme fedendo a sangue. Outra das neuras de Júlia era trabalhar com uniforme sujo, fazia de tudo para não se sujar, criou uma habilidade única de trabalhar sem se sujar. Era preciso correr, fazer toda abertura antes dos balconistas chegarem. Sexta-feira era sempre mais corrido, dia de chegar carregamento novo de carne para o final de semana, o que tornava o seu dia uma verdadeira loucura. Movimento intenso, desossa, clientes que não sabiam esperar, balcão de auto atendimento que deveria ser devidamente abastecido. Toda a dinâmica do trabalho, em tese, devia de ser dividida, um pouco para cada, porém, na realidade não era o que acontecia.

Júlia ficou por alguns minutos parada na entrada do açougue, respirou fundo, fez uma oração curta pedindo ao pai proteção, olhou para trás mais uma vez, de fundo, figuravam vestiários e a porta dos fundos por onde os funcionários entravam. O seu desejo era de voltar, jogar tudo para o alto, porém, ela sabia o quanto era necessário manter aquele emprego, o salário não só ajudava no orçamento da casa, como também permitia a ela fazer os seus estoques e reservas, hábito relativamente novo e desenfreado, por sua vez, muito criticado por alguns parentes até mesmo pelo esposo. Júlia aderiu ao movimento dos sobrevivencialistas, conhecia o quão delicada andava a economia brasileira, empresas fechando, outras demitindo, preços subindo, lojas abrindo falência, ninguém parecia perceber que o barco estava afundando enquanto a música da tranquilidade estava tocando, semelhante ao filme do Titanic.

O primeiro passo era acender as luzes do balcão, a parte de baixo ficava montada, faltando apenas as gancheiras. O balcão era dividido em quatro partes. A primeira: destinada para bovinos, cortes de primeira e segunda, peças para bife, carnes de segunda e primeira. A segunda parte: destinada aos cortes de suínos no geral, bistecas, pernil picado, toucinho fresco fatiado, e o espaço das gancheiras de pernil fatiado, costelinha e paleta. A terceira parte: destinada a linha de temperados, frangos no geral, cozinha da asa, asas, tulipa, sobrecoxa entre outras linhas e marcas. A quarta parte, a maior delas, foi destinada aos cortes frescos de frango. Asa, coxa e sobre, coxinha, peito com e sem osso, tulipa, sobrecoxa desossada, pescoço, pé, miúdos, coxa separado da sobrecoxa. Essa era a base do balcão, feita no final da noite anterior, pronto para abertura. Júlia ficava responsável por preencher as gancheiras de bovino e suíno. Acém e paleta bovina fatiadas para gancheira, costelão, pernil e paleta suína fatiados para gancheira, costelinha. Todos esses cortes deveriam ser feitos pela manhã, o tempo era curto, Júlia sabia exatamente o que fazer na ordem que devia ser feito, tudo deveria estar pronto para abertura. Assim que o gerente e os balconistas chegassem, o balcão estaria perfeitamente arrumado, Júlia ficaria livre para fazer o balcão de auto serviço e cortes especiais.

Luzes acesas, conferido o balcão, preços acertados, tudo perfeito na parte de baixo, nenhuma ruptura ou precificação errada, todas as bandejas estavam feitas. Era hora de correr, de retirar da câmara fria três caixas de acém e três de paletas, fatiar, enganchar, e arrumar a parte alta do balcão. Depois era a vez do costelão, congelado ao extremo, terrível de fatiar na serra fita. Júlia separou uma caixa apenas, o preço não estava bom, era besteira expor muito. Depois de cortar tudo, era a vez da última parte, suínos. Separou quatro pernis, fatiou-os, três bandas de costelinhas, também fatiadas, duas paletas suínas e finalizando com o toucinho, tudo cortado e fatiado. O suor escorrendo na testa, correria tremenda para terminar antes do pessoal chegar. As horas são traiçoeiras, os ponteiros não esperam, Júlia corre para lavar as tábuas sobre a mesa de metal, a última etapa, o suor escorrendo. Terminou em cima do horário, extremamente cinco minutos antes de abrir o açougue, exatamente no momento em que os balconistas chegaram.

O primeiro a entrar foi o Carlos, era sempre o primeiro, depois veio a Amélia e o Joilson. Nessa ordem, entravam, pegavam os aventais e se posicionavam na frente do balcão. Joilson era o mais quieto, falava pouquíssimo, sempre na dele sem se envolver em conversas. Amélia falava bastante, sempre contando das suas aventuras com as amigas, das bebedeiras, das festas, coisas típicas de jovens. Carlos era quem mais conversava com Júlia, mesmo casado e sabendo que ela era casada também, tinha uma queda por ela e não perdia a oportunidade de convidá-la para sair, embora tivesse aparência de homem sério, na verdade, não tinha nada de sério e era extremamente mulherengo.

Cumprimentos, uma ou duas palavras entre eles, Júlia não podia perder tempo com conversas, nem com o atendimento do balcão, havia produção a ser feita, cortes especiais dos mais variados para o balcão de auto serviço, bovino, suíno, aves, temperados, enfim, muito a ser feito em pouco tempo ou tempo nenhum.

O dia seguiu o seu curso de sempre, com o detalhe da intensidade que toda sexta-feira exigia. Como a maioria das empresas não trabalhavam no domingo, o pessoal das fábricas lotava o açougue na parte da tarde, queriam garantir o churrasco do final de semana, queriam evitar retornar no sábado, sempre mais lotado elevando ao máximo o nível de estresse. Enquanto ela fazia os cortes especiais do bovino, vez e outra observava a movimentação do lado de fora do balcão, ouvidos atentos nas conversas que se perdiam pelo balcão atravessando o dia. Em seu coração, o desejo de estar do outro lado, de poder ter o final de semana livre para fazer o que bem entender, porém, os anos se acumularam e ela nunca conseguiu sair do comércio. Outra coisa que a incomodava bastante era o fato das pessoas estarem preocupadas unicamente com suas barrigas, em ter o contra filé para assar, um fardo de cerveja e o carvão e conversas desnecessárias, festas, churrascos em sitios, pés redondos e barrigas grandes preocupados com seus próprios umbigos sem se importarem com nada mais.

Júlia não compreendia as pessoas, nem a si mesma, os sentimentos do seu coração, os desejos que escondido no mais profundo do seu ser. As conversas safadas de Carlos, os seus elogios constantes ao seu corpo, isso a provocava, no entanto, ela nunca deixou que ele percebesse o quanto aquelas conversas a excitava, ela sabia que era errado, cortava logo o assunto mesmo contrariando o que o coração falava, no entanto, por algum motivo ela gostava de ouvir os elogios de Carlos,

Era um perigo que ela achava que controlava.

O dia transcorreu dentro do esperado, ainda que a anormalidade da sexta-feira impusesse o seu ritmo, esse era também calculado e esperado. No açougue, os fregueses de sempre, com as mesmas conversas e reclamações, nada de novo debaixo do sol. Como sempre, o gerente perguntou se ela poderia estender o horário, tola pergunta, uma vez que a resposta era sempre igual todas as vezes.

"Não posso, tenho compromisso", antes o gerente insistia, agora não mais. Os balconistas estendiam o horário todas as vezes, não sabiam dizer não.

Júlia saiu no horário de sempre, para sua surpresa, antes de deixar o estacionamento para ir ao ponto de ônibus, Carlos a chamou, havia saído mais cedo, estava de carro e ofereceu uma carona. Júlia ficou parada por um momento, pensando se aceitaria ou não, sabia que era errado, depois de alguns segundos, concluiu o pensamento, aceitou a carona, afinal, era só uma carona e não havia nada de mais.

Ele era um perigo que ela achava que controlava.

Tiago Macedo Pena
Enviado por Tiago Macedo Pena em 21/06/2024
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