Pecado

Ela tinha acordado há pelo menos meia hora. Mas permaneceu calada, esparramada na cama.

O silêncio no quarto era tão grande que eu podia ouvir a respiração pesada dela bem nas minhas costas.

Estava frio, apesar do ventilador estar desligado pela falta de energia.

Me levantei da cama e olhei pela janela. Estava tudo escuro nas ruas. Um silêncio quase triste.

Me sentei na cama e olhei para Ester. Parada quase como se fosse um cadáver, iluminada pelo pequeno de facho de luz da lua que vinha de fora.

- O que você tem, Ester? - Perguntei.

- Por que você quer saber o que eu tenho?

- Porque eu me preocupo.

Eu percebi um sorriso quase cínico se abrir na boca dela. Mas logo depois ela respirou fundo e se sentou na cama.

- Pois eu vou te dizer o que eu tenho, meu bem.

Imagine que Deus tivesse se dado o trabalho de descer dos céus só pra me jogar numa cama suja de motel, tirar a minha roupa, me virar de costas e comer o meu cu sem sequer me pedir. Sem cuspe, sem carinho, sem preliminares. Só pra depois se levantar e enfiar o pau na minha boca e terminar sorrindo como se tivesse derramando algum tipo de milagre dentro de mim. Você consegue imaginar? Pois é assim. É assim que eu me sinto de vez em quando. Quando ouço as coisas que os homens e as mulheres tem a dizer. Quando vejo as propagandas, quando vejo os gritos nas igrejas, quando vejo as marmotas nos terreiros... Quando o pau bate em Chico, mas Francisco corre solto com o chicote na mão... Me revira o estômago ver tantas pessoas presas com medo do pecado, do inferno, do culpa... Eu tenho um INCÊNDIO dentro de mim... Um negócio que me queima desde que eu me entendo por gente. E que todo mundo diz que é errado. Que é pecaminoso...

Mas tá bom, acho que fui longe demais com a metáfora do estupro divino... Não sei se o Deus cristão iria tão longe assim.

Se fosse um deus grego talvez... Zeus com certeza iria... iria até mais além... E no fundo eu sei, e ele sabe que eu sou tão puta que teria gostado do começo ao fim.

Fiquei me perguntando de onde tinha vindo aquilo tudo. Mas não disse nada.

Apenas peguei um cigarro da escrivaninha. Acendi e entreguei pra ela.

Dessa vez o sorriso dela pareceu mais sincero.

- Não tem nada que um pouco de fumaça não melhore. - Ela murmurou.

- Imagino que sim.

- Eu costumo jogar os meus pensamentos na fumaça. Pra que ela leve pra longe o que eu não quero. E às vezes pra trazer o que eu quero pra perto de mim.

- E como funciona isso?

- Quando você tiver pronto pra aprender eu te ensino.

- Tá certo.

- Não sei se você sabe, Rômulo. Mas a vida não é linear. Nem a vida nem o tempo. Pra muita gente, o passado nunca deixa de ser presente e o futuro nunca chega.

Meu passado está marcado na minha pele. Ele não define quem eu sou, mas tem dias que eu acordo com um gosto amargo na garganta. Lembrando de tudo que eu não queria lembrar. Tendo raivas e ódios imensos, que não cabem dentro de mim. Vomito tudo na fumaça, e às vezes na cachaça. Quando me dá vontade.

Mas aí me diga. O que é uma mulher bêbada e raivosa aos olhos de um homem? E aos olhos de outras mulheres.

- Acho que depende do homem... ou da mulher.

- Talvez. É assim que eu gosto de pensar. Mas o julgamento sempre vai estar lá. E isso você nunca vai ser capaz de entender.

- Por que você acha isso?

- Meu amor. quantas vezes você bebeu até perder a razão. até quase cair. Eu estava com você nesses momentos, mesmo que você não tenha me visto. Mas eu estava lá. E tenha certeza que não tinha ninguém lhe julgando por isso. Você é jovem, você paga suas contas. é seu direito não é? Mas se você fosse mulher, você seria só mais uma puta que não se dá o respeito.

- Agora estou entendendo.

- Você tenta. E é por isso que eu gosto de você.

- Mas e aí? Eu pensei que você não fosse o tipo de mulher que se preocupa com o que os outros pensam.

- Não sou hoje. Mas já fui. E não deixei de sentir raiva quando vejo os olhares. Quando vejo os dedos apontados. Raiva por mim e pelas outras... Pelas que estão aí, escravizadas pelo medo, pelo conceito de pecado, pelas leis dos homens, pelas leis que dizem que vieram de Deus.

- Estamos todos submetidos a isso de uma forma ou de outra.

- Você sempre tenta relativizar a questão, como se a dor do homem pudesse ser igual a dor da mulher. Já percebeu?

- Eu só posso te dar a perspectiva que tenho, Ester.

- Eu sei, meu amor. Por isso estou te falando da minha. Conheci muitos homens entre quatro paredes. No escuro e na luz do dia. Por dentro e por fora. Por isso, quando o homem vem com a cana, eu já estou com o açúcar pronto. Não é qualquer embuste que me engana.

- Queria ter esse sentido que você tem. Já fui muito enganado, na rua e entre quatro paredes. Foram as mulheres que me enganaram, ou fui eu mesmo?

- As duas coisas, meu amor. Muita coisa você fez questão de não ver. E muitas vezes você quis acreditar. Você sentou e esperou o melhor.

- Mas o melhor não veio.

- E não vai vir sempre. Mas você vai aprender. É pela dor que você vai aprender a reconhecer o amor.

Me deitei na cama e Ester puxou minha cabeça para o seu colo.

o colo dela era quente. E eu sentia o cheiro de cravo vindo do cigarro. E de canela vindo de sua pele.

Me permiti adormecer, mesmo que não tivesse sono.

Mesmo que eu quisesse esquecer,

eu sentia o passado se misturando na fumaça dos meus sonhos,

fechando janelas e lacunas,

mas escancarando um futuro

que eu podia ver chegando

por uma porta entreaberta.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 19/06/2024
Código do texto: T8089357
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