Velório

Chorando bastante coloquei o meu pandeiro e chave de afinação dentro da minha surrada mochila preta e fui de carro de aplicativo para o cemitério. Estava arrasado com a morte do nosso amigo Mingau, apelido do nosso agora saudoso vizinho, que apesar de eu conhecer há décadas nunca havia me contado seu nome de batismo.

As minhas lágrimas refletiam uma tristeza profunda. A notícia do falecimento me atravessou, pois eu acreditava que ele teria, novamente, alta do hospital. Das outras vezes ele melhorou e voltou para casa onde continuou o tratamento. O motorista do carro de aplicativo, me olhando consternado, me deu os pêsames. Eu apenas acenei com a cabeça para agradecê-lo. Não conseguia falar nada.

Estava doendo na minha alma o fato da família não ter dado importância para atender o último pedido do meu companheiro que era ter um velório alegre, sem choro, nem vela, ele gostava de festa . Familiares, vizinhos, amigos, todos sabiam que ele desejava ser festejado, cercado na hora da despedida por pessoas que ele amava e queria gente cantando músicas que ele tanto prezava, festejando a vida.

Ele sabia ser parceiro, era risonho, ficava colado ouvindo rádio ouvindo música o dia todo. Quando eu recebi a mensagem dizendo que um religioso faria orações no velório e no mesmo cemitério o corpo seria enterrado às 13 horas eu senti uma revolta me invadir, uma ira santa, quase uma vontade de vingança contra aquele filho único dele. Um ser amargo, com cara sempre fechada, incapaz de responder um “bom dia”.

Mingau era popular, querido, morador antigo do bairro do Limão, na zona norte, desfilou muitas vezes em escolas de samba de São Paulo desde a adolescência e era apaixonado por pagode. Tinha vários amigos e muitos colegas que eram músicos, alguns deles profissionais. Adorava observa los afinando os instrumentos e cantando nas rodas de sambas.

Qualquer coisa era motivo para cantoria, um encontro em um boteco da região logo se transformava numa farra, com cerveja, petiscos, samba ao vivo e alegria. Ele era o inimigo do fim, do pagode, do samba de roda ou do choro. Sabia de cor as letras de sambas entedos de todas as épocas.

Imaginei que ao chegar no local do velório encontraria a sala cheia, afinal Mingau era morador antigo do bairro. Senti uma tristeza misturada com revolta quando cheguei no velório, na sala número dez, quase vazia. Poucos familiares sentados, alguns conhecidos e só. Naquele momento descobri que o nome de batismo dele era Galeno. Talvez ele tenha sofrido muito na época de escola com a zombaria típica da molecada sem piedade. Ele tinha um nome diferente. Será que esse nome tinha algum significado? Eu podia pesquisar na internet, mas definitivamente não era a melhor hora para descobrir isso. Não conseguia acreditar. O filho, para surpresa de todos e sem nenhum comentário, escolheu enterrar o pai um cemitério que ficava no outro extremo da cidade, na zona sul, muito distante para todos.

Atravessar a cidade de carro não era tarefa fácil, o trânsito sempre pesado, e muita gente talvez não tenha tido como ir, quem tentasse poderia chegar tarde demais. Mingau não merecia isso! No grupo de mensagens da vizinhança num aplicativo de celular toda hora eu lia coisas do tipo: "que ele descanse, não vou conseguir ir ao velório porque não estou em São Paulo, viajei e volto tal dia" ou "estou trabalhando do outro lado da cidade e não conseguirei infelizmente chegar ". Quanto blá-blá-blá.

Mingau que parecia ser querido por todos, muitas vezes tinha pedido para ter um velório igual da Beth Carvalho, cantora, sambista, que ele adorava que viu cantar ao vivo muitas vezes. O velório da cantora aconteceu no Rio de Janeiro, por isso, ele não foi. Ficou na vontade.

Ele cansou de dizer que queria sambão. Ele não tinha certeza se havia vida após a morte, mas ele achava que sua alma ficaria feliz onde ele estivesse que seu último pedido final fisse atendido. Não precisava ser algo chique, podia ser na garagem de uma espaçosa casa com quintal ou numa quadra de futebol. Lá no bairro existem duas quadras públicas. Ele sonhava que pudesse ser na quadra de escola de samba que ele amava.

Ele ficou encantado vendo na televisão a cobertura da roda de samba que os músicos amigos da também saudosa Beth Carvalho havia feito para homenagear para a última homenagem. O espaço lotou. Foi inesquecível.

Para minha amargura o filho ingrato mandou colocar cada lado do caixão uma coroa de flores e na outra lateral da sala havia um castiçal com velas acesas. Não atender o último pedido de um familiar é inaceitável para mim, como uma falta de consideração, uma prova de falta de amor ao falecido. O silêncio era cortante, nada de música, uma tristeza pesada pairava no ar.

Fui dar os pêsames ao filho dele sentindo uma dor forte no peito como se alguém estivesse me cortando sem anestesia. Respeitosamente e procurando as melhores palavras - na minha mente - para não criar constrangimento disse baixinho ao filho que o sonho do pai dele era um velório musical e longo. Ele nem olhou para mim e resmungou: "Não tem cabimento, nem clima para isso". Não falei mais nada. Me afastei. Jamais celebrar a memória de alguém querido pode ser considerado desrespeito.

Eu só sentia raiva daquele filho perverso. Pessoa horrível. O pai era amigo de diversos cantores e nem uma só música a capela ele deixou cantar. Satanás jovem. Alma sebosa. Miserável!

Eu estava inconformado. Eu mentalmente xingava aquele ingrato. Minha vontade era voar no pescoço do verme de quem o Mingau era pai. Não havia cabimento brigar. Eu precisava resignar-me.

Eu penso que se meu amigo soubesse antes de morrer como seria sua despedida, se isso fosse possível, se existisse um tipo de viagem no tempo, ele visse aquele velório quase vazio ele não teria depositado tanta confiança em pessoas com coração de pedra. Não chamaria de amigos gente que era apenas conhecida, nem era colega de verdade. O filho tinha uma carranca no lugar da cara e seu jeito me causava desconforto. Todos que eu conhecia o achavam insuportável. O toleravam porque o pai dele era uma simpatia. E ele era filho do vizinho boa praça. Qualidade que o ignorante do filho não herdou.

Perto do meio-dia chegaram ao velório um cantor e alguns músicos, uns vizinhos e o dono do boteco que íamos sempre.

Eu fiquei apenas observando o velório com um ou outro conhecido que aos poucos foi chegando e que logo iam embora... enquanto as minhas lágrimas escorriam.

Cheguei bem perto do caixão do meu quase irmão e fã de muitas rodas de música e saraus onde ele delirava de felicidade perto dos instrumentistas, sempre muito atento aos movimentos e com disposição para ajudar no que fosse preciso. Inclinei me corpo até o ouvido esquerdo dele e falei sussurrando :

- O pandeiro está aqui dentro da mochila. Sei qual era seu último pedido, meu amigo, e o trouxe em homenagem à você, saiba que você me fará muita falta.

Depois de algum tempo fizemos um grupo, todos nós amigos, saímos da sala, em silêncio, um olhava para o outro, talvez sem coragem de falar o que parecia que todos sentiam. Fomos até o estacionamento do cemitério onde estavam os carros deles estacionados.

Eu fui ao primeiro a dizer que nosso amigo não merecia o qye estava acontecendo. Todos concordaram com a cabeça . O dono do boteco quebrou o silêncio e falou:

- Que tal irmos para o boteco e chamarmos músicos, colegas e vizinhos para um samba-homenagem ao nosso amigo?

Eu suspirei aliviado e comentei que o meu pandeiro estava na mochila. Tudo o que eu queria era de algum modo era festejar a vida, relembrar bons momentos, pois a morte era nossa única certeza. Realizar o último pedido de alguém que partiu é algo especial, é um compromisso. Tocar um samba para ele. Contei que meu pandeiro estava na mochila, pronto para ser usado.

N inguém queria assistir o enterro. Seria deprimente demais ver o caixão descendo até a sepultura .

O músico disse:

- Vamos mandar fazeevum grupo no WhatsApp e mansar mensagem avisando para todos que estaremos no bar para um velório de corpo ausente, regado à cerveja, com as porções que ele tanto gostava de comer, cantando e tocando samba ao vivo.

Eu fiquei emocionado. Fui tantas vezes beber o morto em velórios de amigos e familiares, fazer uma despedida alegre, muito respeitosa, cheia de camaradagem, ouvindo e contando as histórias do falecido. Sugeri deixarmos vazia a cadeira onde Mingau costumava sentar no boteco. Onde ele estiver ele será celebrado, vai ter contação das histórias que vivemos com ele, lágrimas apenas de saudade, cantoria, animação, cerveja e alegria.

Eu entrei no carro do músico e peguei carona até o boteco que ficava perto de casa. O trânsito estava ainda pior. O trajeto seria longo. Foram emciadas as mensagens no grupo avisando que estaríamos no bar às 18h. Depois das 22h sabemos que não pode fazer barulho pois ali tem muitas casas, mas até lá teremos muito tempo para festejar. Depois do horário reduzindo o volume podemos ficar conversando, comendo porção de mandioca frita e tomando cerveja trincando de tão gelada, a dupla preferida do imortal. Sim, quem mora no coração dos amigos que cultivou durante toda a vida não morre nunca. Liguei para a minha companheira de vida e avisei que eu iria de carona para o boteco, e pedi que ela avisasse nossos parentes tambem. Todos gostavam do Mingau e quem quisesse poderia ir pro bar do Seu Tuti.

A bateria do meu celular estava quase no fim. Outra hora, com calma, vou procurar no Google o significado do nome Galeno. Fiquei curioso.

Manuh Danorte
Enviado por Manuh Danorte em 18/06/2024
Reeditado em 23/10/2024
Código do texto: T8088605
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