CRIANÇA NÃO É MÃE: UM CASO DE FAMÍLIA (baseado em fatos reais)
Sou terapeuta há dezoito anos, mesmo endereço no centro da cidade. Fiz do ouvir atento instrumento de trabalho, atendo particular e no programa social que o SUS oferece. Histórias da via real perambulam na minha sala, vidas sem norte ou fio condutor para fora das obsessões, traumas, ressentimentos e medo, sempre o medo a obstruir felicidade. Vou lhes contar a história dessa adolescente que chamo de Zero, ou melhor, ela vai contar porque o que se lê é a transcrição das gravações. Nesse momento em que deputados votam contra a vida condenando adolescentes violentadas, essa história dá voz para a menina invisível que trabalhou cortando cana desde os 9 anos, e que veio a saber do amor 9ou a falta dele) pelas mãos do ódio e do desprezo. Não cometo crime contra a ética do consultório nem exponho o anonimato da paciente, pelo contrário, faço-lhe o favor, O senhor grava e conta pra todo mundo vai saber que o amor venceu o ódio?
1ª SESSÃO / Olha doutor, só estou aqui por causa da assistente social, que esteve lá no abrigo e ajudou a gente, eu nem tinha o de come pra sair procurando o que fazer da vida, que se não fosse mode trabalhar eu não saia daquele lugar. Lá só tem gente boa que estudou, antes de conversar fazem ficha gente, e botaram na tal ficha que a menina vai pro Rio de Janeiro, pois é, ela nasceu doente mas vai ter vida de rico, oh que coisa, um dia ela vai na praia de biquíni, vai vendo, deve que lá no Rio de Janeiro tem muita escola né doutor, e bala perdida, ainda posso ver minha menina crescida passar na televisão desviando de bandido, Deus sabe o que faz, Deus protege, Deus há de dar pra ela uma história divertida, que eu não tive não viu doutor. Na cana só foice pra lá e pra cá, em casa cana também só que no meu lombo, minha mãe bebe cachaça desde que lembro, nunca me bateu é verdade, mas também nunca tirou as mãos do meu pai de cima de mim, ela via, ela sempre viu. Era meu pai que me tirava da cama madrugando pra ir pra roça, eu acordava com a mão dele debaixo da coberta, mão ressecada feito estopa, minha perna chão de cozinha, desde os 9 e nunca falei auto, mas falava oh pai pára! mas não parava, os olhos dele me queimavam, eu tinha medo de falar pra mãe porque pensava que ela é que tinha mandado meu ele fazer aquilo, ela sabia e quando desviava a cabeça eu tinha mais raiva e por isso eu ficava calada, só na roça ela ralhava com pai, era quando eu já tinha 13, Ôh Tião deixa a menina trabalha em paz, ele querendo me roçar no meio daquele nada. Quando minha barriga começou a crescer, mãe parou de trabalhar e só bebia, ninguém do povo da roça viu a cara dela mais. Depois que a assistente social chegou lá em casa, pai desapareceu. O sem vergonha fugiu por que o povo fala né doutor, foi o povo que falou pra assistente social que eu estava de barriga, que devia ser do Seu Tião, daí ele sumiu pra lá de Pedregulho. Minha mãe bebe por que não é de ação, nunca foi e tem coração ruim, de certo que a cachaça é mais homem pra ela do que meu pai, sujo ele sempre foi, só nela ele batia, já com meu irmão é outra conversa, pro Thomaz ele baixa a cabeça e fala pouco, parece que tem vergonha de não ser capaz de ter outra mulher pra bolinar, O Thomaz é homem de verdade, é filho do meu pai com outra que foi deixada pra traz e estragada como tudo que ele toca, o Thomaz trabalha e cuida da vida dele querendo melhorar. O Thomaz é a única coisa bonita que o canavial não destruiu. A primeira assistente social me mandou pro abrigo e foi lá que a menina nasceu. Desculpa chorar. Foi quando lá no abrigo que me levaram a menina pro Rio de Janeiro, vai vendo que vai ser melhor, com gente rica na cidade grande vai arrumar a boca que nasceu doente, a infeliz nasceu com essa marca na cara, lábios divididos feito lebre do mato fugindo no fogo da cana. Ouvi dizer que nasce doente filho de sangue igual, as mesmas pessoas que não deixaram eu abrotar disseram que Deus vai levar a inocente por que é filha do meu pai. Vai não viu doutor, que aquela vai ser dura na queda porque filha da dor, vi nos olhinhos dela o segundo que pude, nasceu de sangue igual mas vai ter outra vida, vai ter oportunidades. Tá vendo minha barriga? Tô gerando de novo. Já me chamaram de puta e vagabunda, mas esse que tô esperando vai ser igual o Thomaz, meu meio irmão é homem de verdade por inteiro.
2ª SESSÃO / Eu sei doutor, ter saído do abrigo foi arriscado mas a gente precisa tocar a vida com o que tem, e tamo recebendo ajuda do pessoal da igreja pra sonhar de novo. Meu caso não é só perda, eu tô cansada de perder. Minha mãe não faz falta porque faltou esse tempo todo, teve coragem de meter fogo na casa que era a única coisa certa. Ela devia era de ter queimado junto. Não, falei da boca pra fora, sei que ela tem lá a dor dela que não é minha. Eu e Thomaz agora não tem endereço, é alpendre e sacada de loja, na praça a gente dorme só dia de semana e de vez em quando é na guarnição da rodoviária. O plano é om Thomaz que sabe fazer casa com as mãos pôr uma de pé, num lugar decente da periferia e nós criar esse daqui, que vem no mundo pra ser meu, ninguém vai botar a mão nem entregar pra gente da mais alta. Sonho toda noite com a menina que foi levada pro Rio de Janeiro, acho que sempre vou ter pesadelos, com meu pai que já foi preso, com minha mãe se fazendo de tonta, com o fedor do chorume no canavial seco. Eu chamo aquela de Conquista porque é pensando em vitória que eu deixo de tremer de medo. Ela vai crescer e um dia vem me dar um abraço, não vem doutor? O senhor tem razão, agora eu preciso lutar pelo que restou, fazer limonada do azedume, e aí logo nós vai ter casa e salário, que eu não gosto de viver de esmola, quem dá faz isso pra não ter que rezar.
3ª SESSÃO / Bom dia doutor, vim só me despedir. Não é pra sempre né que esse negócio de terapia é bom e faz bem, pra vida toda né. Vou ficar na cidade mesmo, o Thomaz é que vai pra Rio Preto, ele conseguiu uma vaga na casa de recuperação de lá, tem muito drogado pra internar e não falta emprego. É um novo começo, ele vai fazer curso de pedreiro pra arrumar serviço aqui, depois a gente vai alugar um cômodo com banheiro e criar nosso filho que tá forte com 3 meses e não tem sangue ruim. Deus dá o alicerce. Um dia, doutor, até o senhor vai poder tomar um cafezinho assistindo televisão lá em casa. Não estou chorando, é um cisco ou alergia. Então vou indo, se eu choro o senhor pode pensar que não sou agradecida. Eu queria era mesmo poder pegar na sua mão e dizer que o senhor ter me escutado fez foi dar mais força pra minha coragem. Fica com Deus também, e não esquece de contar pra toda gente que o amor venceu o ódio.
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Baltazar Gonçalves é formado em História pela UNESP, é membro da Academia Francana de Letras, é autor dos livros TECIDO NA PAPELARIA e DEPOIS EU CONTA: DIÁRIO DOS MISERÁVEIS pela editora Penalux; ALBERGUE DE GIRASSÓIS pela editor Kotter; e estará lançando QUANDO PERMITIR A MARÉ pela editora Patuá em julho.