Novo Capítulo (ou Escuta Aqui)
As caixas com a primeira edição do meu livro tinham chegado da editora e estavam no canto da sala.
Irei autografar um por um. Cada exemplar vou vender para meus amigos e familiares, eles querem comprar, fazem questão de prestigiar essa conquista. Todos sabem o quanto esse lançamento seria especial para mim.
A edição virtual lançada antes da física tinha sido bem recebida pelos leitores de e-books. Eu sabia que não ficaria rica vendendo livros disponíveis para leitura em um mini tablet, mas estava transbordando de felicidade mesmo assim.
Eu completei 40 anos dias atrás e dessa vez não fiz festa, não comemorei como costumava fazer. Sinto que quero realizar muitas coisas. Escrever ficção é algo que sempre vou poder fazer.
Em uma sociedade idadista como a nossa, que julga e classifica mulheres o tempo todo como um produto com data de validade, é um alívio conseguir fazer o que sempre amei, mesmo ainda tendo uma outra atividade profissional durante meio período, eu estou apaixonada pela ideia de começar a escrever roteiros e colocar em prática tudo o que aprendi nos recentes cursos presenciais que fiz.
Depois da pandemia sei que não quero deixar passar nada, quero abraçar muito meus amigos, realizar minhas metas, sonhar alto, beijar na boca, sentir desejo, faço questão de me sentir VIVA.
Busco vivenciar momentos felizes. Estou iniciando um novo ciclo e deixando para trás o que não me serve mais. Não vou carregar fardo, quero ter prazer, recuso -me à apenas existir.
Meu casamento se parece com um vestido antigo que ficou muito tempo guardado, ficou fora de moda, mofou , não tem como recuperar.
Ele não me apoiava e fazia questão de dizer com ironia que “escrever é hobby” e que “é uma pena que eu tenha nascida herdeira de uma rede de hotéis de luxo”. Esses comentários somados à desconexão na intimidade, a família esnobe dele, a falta de amor pelo trabalho com algo, mas que paga um bom salário e onde ele está há mais de uma década me brocharam. Temos valores muito diferentes. Todos acham que ele ganha muito bem, ele, vaidoso, adora causar essa impressão.
Está tudo encaixotado. Não apenas os livros. Coloquei minhas coisas em malas e caixas grandes de papelão rígido que comprei em uma loja. Eu vou sair do apartamento que é dele. Quando nos casamos eu aluguei meu antigo micro apartamento e vim morar com ele nesse imóvel que ele já possuía. Para que eu fiz isso?, eu me questiono sempre.
Notei esses dias que detesto quase todos os vizinhos desse bairro. Eles , os vizinho$ arrogantes, não me dão bom dia na rua, nem shopping que fica no bairro ou quando os vejo no saguão do prédio onde moramos.
Eu nasci e fui criada pertinho do metrô Santa Cecília. Tão perto e tão longe daqui. Tive uma vida de muito trabalho e estudo. Paguei todos os cursos que fiz ao longo dos anos e hoje estou colhendo os frutos do meu esforço. Diferente dele que herdou esse apartamento de alto padrão carro, terrenos, joias da família, e muito dinheiro quando o pai dele morreu.
Ele agora está viajando pela empresa. Coisa que ele adora. Se sente importante voando na classe executiva, fica hospedado em excelente hotel pago pela empresa, apesar de não ganhar um salário incrível ele adora o status que o cargo que proporciona entre os seus colegas de trabalho e familiares. Somos e agimos de modos tão diferentes na vida.
Meu apartamento está alugado e o inquilino é ótimo, não vou tira- lo de lá à toa. Ele nunca atrasou o aluguel e todo ano renova a pintura, ele trabalha ali perto, isso torna tudo muito prático . Eu também não tenho vontade de voltar para lá e por isso aluguei uma casa térrea, ampla, muito antiga, num bairro sem luxos, uma casa ampla com um jardim que está abandonado, mas ficará lindo em breve, com banheira, com uma pequena lareira, e uma cozinha enorme. Parece um sonho. Vou adotar um (só um ?) cachorro vira-lata caramelo, já me imagino fazendo pratos deliciosos para jantar, quero montar um lindo e aconchegante escritório em um dos quartos e curtir cada metro quadrado do meu ninho, meu espaço no mundo.
A decoração que será simples, mas caprichada. Comprarei aos poucos, sem pressa, vou garimpar lojas e brechós. Os armários serão feitos por uma empresa incrível de marcenaria que uma amiga me indicou. Pagarei em parcelado, mas tudo dentro no meu orçamento. Farei finalmente uma estante linda e planejada para enorme minha coleção de livros.. Um sonho Como sempre darei um passo de cada vez.
Eu já me imagino tomando um vinho, numa noite fria, com a lareira acesa, comendo um delicioso prato de massa fresca caseira com molho ao sugo, feito por mim e muito queijo ralado, isso tudo depois de ter escrito durante o dia todo, no meu mundo ideal além de escrever muitas horas por dia farei reunião remota com minha editora, e terapia presencial, irei caminhando malhar na academia do bairro e comprar frutas. Gosto de flores e já imagino os pássaros cantando no meu jardim, a doce presença de um cachorro e quem sabe também adotarei um gato bem ronronento que ficará deitado numa caixa de papelão no canto do sofá!
Sim, sou romântica, emocionada, sonhadora, abracenta, cheia de energia, tenho alma de artista, sou procurada pelas amigas para dar conselhos, elas dizem que sou boa ouvinte e que consigo aconselhar sem julgar. Olha só !
Morar em uma casa desse tipo era tudo que eu queria há anos, mas a vida parece que me levou para outros caminhos . Vou reajustar minha rota, sei qual trajeto quero percorrer. Meu desejo é viajar, na literatura, ficar estagnada nunca foi minha meta. Me vejo escrevendo muito, publicando outros livros, recebendo amigos na noite de autógrafos em uma pequena e charmosa livraria que visitei há pouco tempo que fica perto da estação de metrô Vila Madalena. Sonhos são meu combustível.
Eu sinto que não adianta tentar conversar com ele ou dar mais uma chance. A última tentativa de conversa acabou em briga feia. Não suporto mais trocar ofensas, ficar magoada e também distrata lo. Tudo começa sempre com um “escuta aqui” e termina mal.
Como profissional sei que sou potente e capaz de encerrar esse capítulo da minha existência. Nem sempre é fácil colocar o ponto final num texto, mas agora sei que não há mais nada para revisar.
Continuarei trabalhando como revisora, por enquanto. Eu não preciso de muito dinheiro para viver. O aluguel que recebo do meu pequeno apartamento eu guardo há anos e também fiz uma pequena reserva de emergência. Minhas roupas são simples, uso carro de aplicativo, gosto de comidas simples e vinhos modestos. Não ligo para viagens longas ou caras. Ganho livros de presente de aniversário dos amigos e das amigas e tenho dezenas de títulos raros, essa coleção é uma das minhas paixões. Meu sonho de consumo é básico: passar o fim de semana em Ubatuba no verão ou em uma cidade do interior de vez em quando, principalmente durante o inverno, em especial, deixa meu coração radiante.
Para meu ex-marido deixarei um bilhete perto da tv. Nosso relacionamento morreu, falta apenas enterra lo. Levarei desse apartamento apenas minhas roupas, presentinhos que ganhei das amigas, meus livros que são meu tesouro literário, tudo de papelaria que tenho, meu notebook, meu celular, os carregadores e minha cadeira ergométrica do escritório. Cadeira essa que é o único objeto que paguei caro. Preciso que ela seja ótima porque passo horas a fio sentada escrevendo sem parar.
Será uma delícia começar a escrever, em breve, o rascunho do próximo capítulo da minha vida. Vou revisá-lo muitas vezes, sem pressa, degustando de cada parágrafo. Afinal, eu sou apaixonada pela escrita desde criança e prometi para mim mesma que os próximos anos minha vida não serão uma página em branco.