A letra perdida

As palavras fugiam-lhe da cabeça, imutáveis e irreais. É difícil reunir significados, encaixotar sons e sensações. A dor, por si só, era inquantificável. Não se contava as batidas do coração, nem as gotículas de suor das mãos frias(sentia o corpo arrefecer em meio à varanda quente. Duas sensações ao mesmo tempo. Tocar, cheirar e ver. Era isso que desejava. Tocar a si mesmo, fincando os dedos até o último poro da pele firme.

Reabriu o livro encardido, observando atentamente as letras parcialmente apagadas pelo tempo. A vontade, essa coisa quase impraticável, animalítica em sua essência, enchia-lhe os lábios secos e os olhos difusos. Ergueu-se nos quatro membros, fechando os olhos. De tudo, queria o nada. Ver a escuridão, ouvir o silêncio, viver a morte, tinha total merecimento das sensações. A última talvez já presente, docemente amarga no movimento peristáltico dos intestinos, além da quietude na cabeça.

— O que é o Nada, papai?

— É o contrário de tudo, ué.

— Então quero tocar o Nada também.

— E você já tocou o “tudo”, então?

— Acho que não.

— Então como é que diabos vai por as mãos no tal “Nada”? É óbvio que não existe.

O menino fitou o pai, estarrecido. O Nada tinha que existir, estava convencido.

— Então eu vou sentir.

— Como é?

— Eu vou sentir o Nada.

O pai o encarou, consternado. Um sorriso fluiu em sua boca logo após, repentino.

— Sente, então. É o mais fácil de sentir mesmo, no final das contas. Só não esqueça de preenchê-lo depois.

— E pra preencher é tipo quebra-cabeça? Como é que faz?

— Não sei. Viver já serve, eu acho.

Continuou de pálpebras cerradas, ansioso. A meta era clara: abastecer-se de sentimentos. Mais coisinhas intangíveis a serem materializadas no vazio de seu cérebro. Se o bendito “Nada” era a perda, o vazio, talvez se emaranhar entre ideias fosse apenas estágio, afinal. Sentir-se revigorado, produtivo, o fim último da totalidade.

A tarefa mais difícil, entretanto, consistia em preencher-se por si mesmo . Verdade seja dita, faltava -lhe matéria. Matéria viva, circulante, fervorosa em todos os cantos. A solução? Cegar-se. A batalha vencida é aquela que não se vê. Respira fundo então, expandindo os pulmões, também cheios de ausência do ar puro e leve que transpira do orvalho mais fresco. Qual seria o gosto da solidão? O vazio tinha inúmeras derivações. O pai, aninhado ali, no cantinho do minúsculo sofá cinzento, quiçá soubesse.

Foi-se cauteloso, como quem explora a sabedoria de um grande fera milenar. Os coturnos pretos fixavam-se sobre o chão brilhante, seco. Moveu-se com cuidado, deixando os pés absorverem a frieza do piso.

— Pai...

O homem abriu lentamente os olhos, empoleirando-se logo em seguida nas duas pernas agitadas. Estava pronto para o ataque. A farda revestia habilmente a compleição física corpulenta, estufada como a de um pavão. Bater em retirada dali seria uma ideia ótima, magnífica. Faltavam-lhe as asas, no entanto. Algumas aves, é verdade, não nascem para voar. Encontra-se ainda em menor quantidade as que transmutam para tal aptidão. O fato é: ir ao céu leva tempo. Tempo que nem os mais valorosos pássaros têm. Ele apara as asas, corta as garras e cega os olhos. Não há necessidade de gaiola, a restrição é natural.

— O que foi?

— Que gosto tem a solidão?

—" Gosto“? . Isso não tem gosto. Sabor tem o que a gente tritura entre os dentes, sem deixar rastros. E mesmo assim não fica nada pro paladar lembrar. Por que é que a solidão vai ter sabor, então?

A criança ficou pensativa. Era verdade, esqueciam o gosto diário de cada elemento, coisa qualquer. Sorviam rápidos as memórias, palavras – que criavam por si só mais sabores, marcantes e distintos entre si-. Mas o que dizer da solidão, deglutida em pedaços duros, pequeninos feito cápsulas, que lhe atravessavam todo o sistema digestório em direção aos nervos. Não era remédio, estava certo. Muito menos toxina, que lhe envenenaria o corpo franzino.

— Mas eu sinto, pai... Eu sinto aqui . — Apontou para as têmporas. Eu deveria me ouvir, não é?

— Depende. Eu me ouvi e muitas vezes não reproduzi a melodia que tava dentro da minha cabeça.

— Então como é que eu escuto a minha? Preencher a mente é difícil pra mim.

— Bem... É que a gente não enche nada, no fim das contas. Só de silêncio mesmo.

O garoto voltou ao quarto, abismado. Como aceitar algo que nem sequer tinha começado? Não estava cheio o suficiente. Inspirou profundamente, raciocinando. A escuridão o envolveu, tal qual fizera ao pai nos últimos momentos da noite, acobertando suavemente suas mãos e braços exaustos. Esvaziar-se era o objetivo final daquele homem, decerto de todos os outros também. Recomeçar não doía, era verdade, o difícil seria continuar. Estender o Vazio feito um manto longo e frágil, sempre a ser remendado, tornara-se suplício extremo. Deveria ser dele, e somente dele. Não ficar à mostra para os olhos de todos, transmutado em inúmeras formas. “Recomece, recomece. Já estou cheio”. Dizia a si mesmo.

O menino prosseguia, imerso na constante (senão irritante, para falar a verdade), meditação. Conseguia ouvir os barulhos externos com nitidez. Os cochichos das formigas, vagantes, mas não perdidas, o gorjear dos pássaros, recitando as notas musicais costumeiras. Escutou a si mesmo, finalmente. Prendendo e soltando o ar, se preparando para a incursão exaustiva através do Eu. As entranhas sussurravam, o coração se exasperava, o corpo era um ser vivente além de si. Tridimensional, ossudo. Cabeça, abdômen e pés, guardando cada um seu segredo. Era caótico, dono de uma lógica própria. Tapou então os ouvidos e cerrou as pálpebras: Voltaria ao silêncio? Queria a maldita conformação? Queria, claro que queria. Um sorriso preencheu sua boca, antes lar do nada. Quão bom era estar vazio! O pai, lúcido em seu sonho mais profundo, sorria também.