Poça de sangue
Três disparos e o corpo do homem vai ao chão. Dois tiros no peito e um na pilastra que dividia as portas da padaria. Os outros dois homens que estavam na mesma mesa se afastam para trás com a roupa e o rosto respingados de sangue.
O homem ainda tem movimentos bruscos até paralisar mortalmente.
Da carrocinha de cachorro quente ao lado do jornaleiro já fechado, em frente a padaria, outro homem paralizado, de terror. A moto com dois homens que fizeram os disparados pediram ao vendedor que se afastasse da carrocinha, o que ele fez, mas manteve-se inerte ficando surdo com o barulho dos disparos.
Menos de um minuto de silêncio foi quebrado pelos latidos do cão vora-lata que acompanhava o homem, agora morto no chão.
Uma poça de sangue vai surgindo do seu corpo deitado de bruços no piso frio. Frio do piso azulejado. Frio da noite de inverno com aquela chuvinha fina. Frio da morte rápida e estúpida.
As pessoas começam a chegar, uma pequena multidão curiosa. Os atentendes da padaria param tudo para olhar a cena. Pessoas que estavam em outras mesas levantam-se assustadas. Os homens que estavam à mesa com ele, desaparecem.
Do meio da multidão ouve-se um grito de uma mulher, que rompe destemida e se joga no chão. A recém viúva chega ao local. Agarra-se ao corpo em prantos.
-Quanta violência! A padaria foi assaltada ? - diz em seu delírio. Ele é um homem de bem . Estava acertando a vida. Nem andava mais armado. Desfez-se da arma.
Alguns ficaram quietos e os curiosos murmuravam baixinho.
Os dois eram antigos no bairro e todos sabiam que tudo que ela falava não era verdade.
Quando os bombeiros chegaram e atestaram a morte pediram para que alguém verifica-se os pertences dele.
Duas amigas da esposa se ajoelharam próximas do corpo. Uma tentava desvenciliar-se da poça de sangue, consolando a viúva. A outra começou a mexer no corpo diante do bombeiro que se mantia alheio ao acontecido.
Sim, ele não estava armado. Tirou dele o relógio de pulso e o celular. E dos bolsos da camisa rasgada e das calças jeans retirava algumas trouxinhas de maconha e papelotes de cocaína. E ia entregando ao seu proprio filho que estava em pé junto dela. Ele ainda traficava.
O cão andava no meio da poça de sangue para lamber o rosto do dono, suas patas avermelhavam -se. O corpo ainda estava quente mas o sangue não parava de escorrer pela calçada.
A polícia chegou e verificou o corpo. Começaram a fazer perguntas. Os tiros tinham sido certeiros. Mandados.
A mulher tinha parado de chorar e pediu a amiga para fazerem uma oração.
-Você sabe a prece de Caritas?
- Não sei de cor - disse a amiga mais preocupada com o sangue diante de suas pernas.
- Então repete comigo. O mundo está muito violento. Meu marido foi assassinado num assalto.
Ninguém ouviu a prece pois todos conversavam entre si.
Os filho chegaram. A mocinha queria tirar a mãe do local. O filho só observava.
Começou voltar a chover fininho e o frio assolava aquela noite mas o corpo ainda estava quente.
O filho conversou com os policiais, disse que o pai estava se redimindo.
Por último chegou o cunhado, que também tentou retirar a irmã de cima do corpo. Recém saído da prisão queria leva-la para casa, deixa-la em segurança.
Aos poucos a pequena multidão foi dispersando. Os bombeiros foram embora, teria que esperar o rabecão para levar o corpo e isto ia levar horas.
A filha conseguiu convencer a mãe a sair dali, voltar para casa, a poucos metros do ocorrido. A padaria fechou. O homem da carrocinha de cachorro quente também foi embora.
O corpo foi coberto com um saco preto, começava a ficar gelado e rígido. A poça de sangue, misturava-se a chuva e escorria pela sarjeta. O cão também foi levado para casa.
Apenas o filho ficou observando de forma silenciosa. Talvez em sua mente questionava quem pudera mandar matar o pai. Nunca ninguém saberia ? Ele iria se vingar.
E ainda chovia fininho quando o cunhado colocou um toco de vela junto ao corpo. O beijo de Judas. Ninguém percebeu. E a vela não demorou muito tombando por cima da poça de sangue.