FORTE BASTIANI.
Manhã nublada de quarta-feira.
Joelma acordou assustada, o pouco que ela dormiu teve o mesmo sonho das noites anteriores. O relógio no criado mudo apontava quatro e meia, Joelma sentou-se na beira da cama, o esposo roncava ao lado, nem percebeu ela se levantar, ainda faltando meia hora de seu horário habitual, Joelma decide se levantar. Calçou os chinelos, vestiu o roupão, foi direto para o banheiro, a cabeça rodopiando, doendo muito, lavou o rosto, escovou os dentes, voltou ao quarto, o esposo continuava dormindo, por certo não iria acordar, de folga da firma aproveitaria para dormir até tarde.
Com extremo cuidado, Joelma vasculhou a gaveta da cômoda até encontrar a cartela de paracetamol 750 g, engoliu um comprimido e tomou o restante da água de sua garrafa. Com tempo sobrando, aproveitaria para deixar o café pronto. Na maioria das vezes nem café tomava antes de sair, o esposo que sempre acordava nesse horário para fazer o café antes de ir para o trabalho, é de seu costume acordar depois, fazendo tudo na carreira para não perder o ônibus.
Joelma trabalhava há anos em uma padaria no centro da cidade, rotina massante, correria, chateação o tempo todo, de clientes, do patrão às vezes, de colegas de trabalho. Joelma experimentava um estresse incomum, ensaiando uma conversar com o patrão querendo que ele lhe mande embora, porém, o salário, embora pouco, ajudava no orçamento do mês, o esposo não ganhava muito na firma, o salário dela equilibra as contas, o que a segurava de certas decisões.
Joelma terminou de se trocar, penteou os longos cabelos, se perfumou, prestes a completar quarenta anos, ainda conserva um corpo de dar inveja as colegas de vinte, beleza essa, motivo de ciúmes e discussões com o esposo, ela queria mesmo é estar longe da padaria ao invés de passar mais um aniversário trabalhando. A madrugada escura foi dando lugar ao dia, que surgia tímido, o céu fechado de nuvens, previsão de chuva pela tarde.
Enquanto passava o café, lembrava do sonho que teve.
Minas Gerais, fazendo Lindóia, Joelma é apenas uma menina de doze anos, tímida, introvertida, a caminho de casa, de retorno da sede da fazenda, lugar onde todas as manhãs pegava o leite fornecido pelo dono. Cada morador tinha direito de levar um litro. A mãe da menina não falhava um dia. Joelma está a caminho de casa, segurando com firmeza a alça da leiteira. A casa mais a frente, os colegas correndo de um lado para outro, pássaros nas copas das árvores, dia comum. Ela corre em direção a sua casa, a porta está aberta, um último aceno para os amiguinhos do lado de fora. Quando fecha a porta atrás de si, tudo é escuridão, repentinamente toda a luz se desfaz. O medo faz o seu coração disparar, quando finalmente a luz retorna, tudo é silêncio, dentro e fora de casa. Estranhamente todos desapareceram, mãe, pai, amigos, bois, pássaros, não havia ninguém, nada, apenas ela. Por mais que chamasse, não havia respostas.
A fumaça bailarina do café na xícara a fez sair do transe, o relógio denunciava o horário apertado. Ela terminou de tomar o líquido quente que desceu queimando na garganta, pegou a bolsa, o celular, as chaves, saiu apressada. No peito a estranha sensação que o sonho lhe causou, o sentimento de abandono, de estar desaparecendo enquanto ainda vivia.
Rua movimentada, crianças correndo para não perderem o horário na escola, transeuntes com guarda chuvas debaixo do braço, igualmente apressados para não se atrasarem para o trabalho. Todo mundo tem pressa, sempre correndo para algum lugar. Carros em velocidade na rua, motos desviando-se para esquerda e direita, um quase acidente, buzinas estridentes, xingamentos, nada de novo debaixo do sol.
Joelma não está com pressa, foi o tempo em que ela saia correndo para não perder o horário, para atravessar o sinal, para ser a primeira na fila, de uns tempos para cá, passou a não se importar mais com o tempo. Passos sempre curtos, olhar perdido no horizonte todas às vezes.
No pensamento veio a lembrança do estranho sonho, por um minuto imaginou a sua cidade sem habitantes, as ruas em completo silêncio, carros e ônibus encostados, mercados abertos, sendo ela a única pessoa existente ali, exatamente como no sonho apocalíptico.
O ponto de ônibus estava vazio, silencioso, certamente que perdeu o primeiro, laranjeiras, sentido centro, sempre lotado, esperaria pelo segundo, que não demora dez minutos, na maioria das vezes, vazio. Ela não compreendia o motivo das pessoas se espremer tanto em um ônibus por causa de dez minutos. Joelma pegou o celular na bolsa, visualizou rapidamente as redes sociais, não havia nada de interessante. Visualizou os noticiários, outra chateação, quando não são matérias sobre política é a respeito de futebol, nada mais chato. No horizonte o sol despontava glorioso, exibindo os seus raios primeiros com majestade, colorindo as nuvens, encantando os passarinhos, que alegres, cantavam nas copas das árvores. Aos poucos, uma e outra pessoa foi chegando no ponto de ônibus, mochilas nas costas, olhos grudados nos celulares, não percebendo o esplendor de mais um amanhecer. Ninguém nunca percebe, não olham sequer para os lados, nem um simples "olá", cada um está preso em seu universo digital.
Novamente as lembranças surgem, o sonho, a solidão que deveria lhe assustar parece objeto de seu desejo maior. As lembranças são dissipadas com a chegada do ônibus.
Joelma procura o seu lugar de sempre, que, para sua infelicidade estava ocupado, ela sentou-se mais para trás do ônibus. Cada um procurou o seu lugar, cada um indiferente aos outros, sem conversas, como deve de ser no mundo idealizado por Joelma. O motorista sai apressado, nos próximos pontos, lotação total, é a colmeia Sorocabana despertando os seus soldadinhos de chumbo para seus tediosos afazeres universais.
Uma mulher sentou-se ao seu lado, alta, magra, rosto gracioso, olhos verdes, roupa de trabalho, por certo, funcionária de algum mercado, operadora de caixa talvez. Joelma não faz muita questão, não quer conversar, porém, a bela moça não compartilha dos mesmos desejo de silêncio e vai logo puxando assunto, falando do trabalho, da vida, de política e inúmeros outros assuntos supérfluos. Joelma apenas concorda, acena positivamente com a cabeça, falando uma ou duas palavras. Por sorte a mulher desce, alívio, novamente silêncio. No lugar, senta-se outra, uma senhora, talvez próximo de seus sessenta, perfumada, muito bem arrumada, um livro nas mãos. A mulher parece muito interessada na leitura, cumprimenta Joelma, abre o livro novamente, Joelma esforça-se para ver quem é o autor. "Dino Buzzati, Deserto dos tártaros", o título logo chama a atenção, novamente lembranças do sonho.
Joelma observa atentamente o livro, a capa é chamativa, apresentando um castelo em meio a um deserto, novamente a sensação estranhamente prazerosa de solidão, a lembrança do sonho. A leitora percebe o interesse de Joelma, mas não diz nada, continua a sua leitura. Joelma pensa em lhe perguntar sobre o que fala o livro, porém, ela não quer conversar com ninguém, pelo menos não por enquanto. O fato de passar o dia todo conversando com clientes chatos, sorrindo para pessoas desagradáveis, sendo educada com pessoas estúpidas, era extremamente desgastante, deixando o psicológico à beira de um abismo. Joelma manteve o silêncio, fez apenas tirar o celular da bolsa e fazer uma pesquisa rápida sobre o livro, a maldição da modernidade às vezes tem as suas vantagens.
Joelma encontrou uma resenha em um blog com os seguintes dizeres:
O DESERTO DOS TÁRTAROS.
Dino Buzzati Traverso (San Pellegrino di Belluno, 16 de outubro de 1906 — Milão, 28 de janeiro de 1972).
Dino Buzzati foi um escritor italiano, bem como jornalista do Corriere della Sera. Sua fama mundial se deve principalmente ao seu romance - Deserto dei Tartari, de 1940, traduzido para português como O Deserto dos Tártaros. Dino Buzzati detém um estilo inconfundível, que não obedece a modas e etiquetas, explorando sempre uma visão fantástica e absurda do real. A sua obra está traduzida em inglês, francês, alemão e espanhol e difundida largamente em todo o mundo. O escritor serviu ao exército e saiu como sargento. Essa experiência serviu para que escrevesse essa obra-prima antes da Segunda Guerra Mundial. Segundo o autor, o romance veio num jorro, numa madrugada quando voltava do jornal para casa. A ideia aconteceu na monotonia do turno da noite, quando trabalhava no Corriere della Sera, naqueles dias. A sensação da rotina que nunca acabava e consumia a vida do autor fez com que o romance acontecesse rapidamente. A narrativa nos apresenta Giovanni Drogo, jovem tenente enviado ao forte Bastiani localizado em uma colina totalmente isolada do mundo, onde o Forte é erguido. Um grande deserto, absolutamente isolado de tudo e de todos. A princípio, Drogo nutre grandes expectativas quanto a nova função, pensando no esplendor da carreira, pronto a defender o forte. Quando Drogo chega no forte, admirado com suas muralhas e sentinelas, cheio de sonhos, o tenente Giovanni Drogo anseia pela glória militar no campo de batalha, e isso nunca aconteceu no Forte Bastiani. Apesar de alguns oficiais de idade tentaram animá-lo dizendo que os tártaros ainda estão lá se preparando para a guerra, e que a melhor atitude é esperar, esperar e esperar.
Drogo encontra senão um lugar praticamente abandonado, parado. O tenente se vê frustrado, fadado ao esquecimento em um forte onde nada acontece. Entregue a solidão, a monotonia, em uma rotina que nunca termina, Drogo perde-se no tempo, sempre esperando que a qualquer momento o forte seja atacado, porém, o ataque nunca acontece. Esse é um romance filosófico, que fala do tempo, de tudo que perdemos e deixamos de fazer quando somos acorrentados pela rotina contínua de afazeres que desbotam o viço da juventude. Se o romance perde em ação ganha em momentos de reflexão sobre a vida, o que parece familiar para quem já parou para pensar se nós estamos fazendo o melhor uso do tempo que temos na terra. Quem já não se sentiu como o próprio Drogo. Às vezes somos ele, entregues ao forte Bastiani de nossas vidas, fadados ao esquecimento, diante de almas mortas e olhos cegos. O autor tem uma narrativa fantástica. Esse é aquele livro que ao iniciar a leitura, não dá vontade de parar...
Joelma interrompe a leitura, guarda o celular na bolsa, finalmente, o ônibus chegou ao terminal Santo Antônio, cada um desce apressadamente, o tempo ainda fechado promete chuva a qualquer momento.
Joelma é a última a descer.
A sua mente está dividida entre a lembrança do sonho e o que acabou de ler sobre o livro, que por sua vez, lhe interessou muitíssimo, era se sentiu o próprio Drogo dos tempos modernos. Joelma já havia planejado tudo, sairia do trabalho indo direto para uma livraria que ficava próximo a padaria, compraria o livro, ela queria saber mais sobre o forte Bastiani e o jovem tenente Drogo. A passos curtos com a cabeça transbordando de pensamentos distantes, seguiu o seu destino triste, a sua rotina massacrante de todos os dias, sem saber muito do livro, ela já se sentia na pele do protagonista da história.
O dia permanece nublado, porém, sem chuva.
No trabalho tudo transcorreu dentro da sua monótona anormalidade odiosa de sempre, cobranças absurdas do chefe, a implicância de sempre dos clientes. Uma amiga aconselhou que ela adotasse a operação tartaruga durante o trabalho, ou seja, trabalhar lentamente de modo a irritar o chefe, fazê-lo demiti-la, era esse o plano posto em andamento. Embora tal atitude fosse contra alguns de seus princípios, Joelma continuaria a fazer conforme a amiga orientou. O que surtiria muito efeito, o chefe já estava extremamente estressado em face da tranquilidade e alto controle de Joelma.
Quando chegou o horário de sair do trabalho ela foi direto para o pronto socorro do bairro, por sorte, próximo de onde estava, mudaria os planos, no dia seguinte compraria o livro.
Uma ideia fervilhava na mente.
Coisa de meia hora depois, Joelma já estava na espera para ser atendida, com as dores que a meses estava sentindo na coluna e tentando ignorar, certamente o atestado não seria para menos de cinco dias.
Havia chegado a sua vez de ser atendida, a médica chama o seu nome, ela entra silenciosa, senta-se, não esperando muita coisa.
— Bom dia Joelma, em que posso ajudá-la, a sua ficha diz que você está com dor de coluna, que você tem uma cirurgia de artrose lombar, com implante metálico em L3 e L4, é isso mesmo? O que aconteceu?
Médica jovem, bonita, muito simpática, o que era raro naquele pronto socorro.
— Bom dia doutora, é o seguinte, eu estou com dores horríveis na coluna, faz alguns anos que fiz essa cirurgia, artrodese lombar, coloquei hastes metálicas e parafusos na lombar, de três dias para cá as dores aumentaram muito, irradiando para a perna esquerda, foi horrível ter que trabalhar assim hoje doutora...
Joelma explicou em detalhes o seu trabalho, o esforço submetido todos os dias. O resultado final foi melhor do que esperava, além das medicações, injeções e remédios para aliviar as dores, a doutora atestou cinco dias para Joelma, era o que ela precisava, ficar longe do trabalho, das pessoas, de conversas, de tudo, silêncio por cinco dias. Ela mandou a foto do atestado para o chefe na mesma hora, que, certamente deveria de estar dando pulos de raiva, pois não havia quem a substituísse, nem mesmo visualizou a mensagem do chefe, não queria saber de nada relacionado ao trabalho.
O caminho para casa foi diferente, embora o ônibus estivesse com o dobro de pessoas, o trânsito ainda mais enlouquecido, ela simplesmente ignorou tudo, estava com uma sensação de felicidade, ela trancou-se em si mesma em um completo e absoluto silêncio. Enquanto não chegava em casa, fechou os olhos, imaginou o sonho, o livro, o protagonista na solidão do forte Bastiani. Outro pensamento veio como um raio em sua mente, pensamento esse perturbador, que a estremeceu por dentro. "Até que ponto a solidão e o silêncio extremo são bons". Pensava, lembrou-se da resenha do livro. Drogo, o protagonista, criou expectativas com o forte, assim como ela com o atual trabalho, no entanto, as expectativas de Drogo foram frustradas quando ele descobriu que o forte não era nada daquilo que esperava era tarde demais para reagir. A solidão então o consumiu dia a dia. A solidão e o abandono veio para Drogo sem que ele pedisse, no caso de Joelma, era ela quem pedia e buscava o fantasma aterrorizante de Drogo em seu próprio forte Bastiani.
Joelma chegou em casa decidida, ela leria o livro com certeza, e tentaria aproveitar o seu tempo ao máximo, mensurar a solidão e o abandono em um nível suportável, pois entendeu que sonho e o livro não foram revelações do que lhe aconteceria mas uma oportunidade de fazer evitar certos aspectos no seu próprio forte Bastiani do dia a dia.