Pela janela lateral do prédio, Francisco observava as luzes da cidade acender e a noite cair ligeira.
O som das buzinas dos carros, na principal avenida da cidade, o faziam companhia.
Preferiu viver a solidão em doses homeopáticas. Vez ou outra, retornava ao único lugar que preservava sua memória viva, sem a permissão de reconhecer-se triste.
As paredes frias de gesso e os quadros inertes, empoeirados, o deixavam com um ar de melancolia e saudade.
Tentou disfarçar o olhar para o corredor, mas havia um grande vaso com gravetos secos. Nem mesmo o bambu da sorte resistia a ausência de oxigênio que aquele ambiente produzia.
Ligou o abajur de teto e à meia luz, sentou-se na poltrona verde de veludo, embaçada pelo ar pueril da cidade e suspirou buscando o ar que lhe faltava.
Lembrou-se do último presente de aniversário e, apressado, levantou-se para ligar a vitrola. Apesar de similar à antiga que o embalou em sua juventude, a máquina era moderna demais pro seu perfil. Havia a opção de escolha do tipo de agulha, textura, espessura, bem como, a forma como o som sairia: sem ruídos/com efeito contra pulos, entre outros.
A única coisa que interessava ao Francisco era ouvir as canções que embalaram sua época, voltando ao passado, nem que fosse por um momento.
Não fez muita questão das opções apresentadas pela máquina de estética impecável, criada por uma grande franquia internacional. Apenas abriu o armário, selecionou os discos e iniciou o ritual de solitude.
Na última semana, assistiu pelas redes sociais, trechos do show de Paul McCartney, no Brasil. Quis tanto conhecer os Beatles. Mas era impreciso, numa época tão restrita e cheia de renúncias, investir numa aventura rumo à Inglaterra. Mas a promessa de que um dia levaria Tereza para o show, mesmo após a sua morte, o fazia sentir culpa/remorso. Era uma sombra pesada do tempo, um fantasma.
Foi um dos primeiros garotos a descolar o som da banda. A formação inicial com Jonh Lennon, ainda em 1956, com o nome de The Quarryman nem contava com os grandes nomes que a sucederam, mas mesmo assim, Francisco se aventurava, entre os estúdios de rádio e televisão, em busca de notícias e canções.
Quando Jonh Lennon sugeriu The Beatles para o grupo, cujo significado viria de "beat" ou batida, o grupo simplesmente estourou e sagrou-se como uma das maiores bandas de rock de todos os tempos.
Francisco, por influência da banda, deixou o cabelo crescer, comprou calças patas de elefante, descolou sapatos brilhantes e de salto e, se encheu de anéis e cordões. O quadro na parede da sala não o deixava mentir sobre quem era.
Foi nessa época que se apaixonou por Tereza. Um amor impossível para o seu tempo, já que era órfão e morava no subúrbio. Naquele instante, Francisco parecia não conter a emoção e. sentando-se no chão, bem ao lado da vitrola, entregou-se às lágrimas.
Era um choro sofrido, escancarado, invadido, de quem aprendeu (a duras penas), que não se controla o destino.
Levantou-se, cambaleante, e firmando as mãos sobre o aparador do equipamento de som, voltou-se para a agulha e, sentiu a sua mais apaixonante canção:
"Stranberry fields forever".
Apesar da canção ser a história do Exército da Salvação num trabalho grandioso com crianças, Francisco se via ali, tal qual, pois foi criado num orfanato, onde eram cultivados morangos.
- Stranberry fields forever! Stranberry fields forever... cantou ele, com a voz embargada.
Em seguida, encaixou Yesterday. Era sua predileta quando o assunto era amor. Foi a música que o embalou na entrada do seu casamento; que virou o hino de amor a Tereza e; é a música que faz com que ele fique anestesiado, imóvel, abduzido. Só juntando os sentimentos...
Foram 38 minutos de pura nostalgia, interrompidos pelo toque do interfone:
- Pai, já podemos ir? Acabei de chegar do mercado. Desce logo.
E, Francisco num ritual de extrema melancolia, desliga o som, fecha as janelas e cortinas, apaga o abajur e coloca a chave na fechadura. Olha para todos os lados, faz uma reverência, tranca a porta e desce as escadas em silêncio.
Chegando no carro, devolve a chave para a filha, que logo diz:
- Quando é que vamos vender essas tralhas, pai? Tudo aí é antiquado, já te falei. Não vamos perder tempo com cupim e poeira. Você não mora mais aí!
- Depois falamos disso, minha filha. Não temos pressa. Posso colocar Jonh Lennon?
E a filha, acenando com a cabeça, disse sim.
"Imagine there's no heaven
It's easy if you try
No hell below us
Above us only sky
Imagine all the people
Living for today"
E era assim que Francisco vivia sua utopia. Ele não morava mais ali, mas o ali é que não saia de si.