Guardiã das Memórias
Guardiã das Memórias
”Va- Ve- Vi- Vi-Vi- Viva”
Uma menininha, ainda bebê, bate palmas e canta parabéns, enquanto o avô assentado em um sofá na sala de estar, sorri encantado!
Aquele homem esguio, cabelos pretos escorridos, um bigode grosso e bem cuidado, ergue as mãos em direção a netinha que corre e envolve-se em seu abraço, momento vivido com tanta intensidade que fica marcado para sempre em sua vida. A voz macia do avô, a magia do amor!
A cena guardada na lembrança é antiga, as imagens que surgem como lampejos, não possuem cores definidas, são monocromáticas; a sala dos avós paternos, o sofá, a pequena mesinha de centro com um pesado cinzeiro prateado, onde o avô coloca as guimbas de seus cigarros. Em um canto da sala, sobre uma pequena penteadeira de madeira fica o rádio, como se estivesse colocado em um altar. Ao contrário das lembranças acinzentadas guardadas na memória, o rádio tem sua cor própria, marrom e um bege mais claro, com enormes botões. O som chega misturado a chiados e ruídos, a avó tenta sintonizar a estação preferida. Ouve a narração dos jogos de seu time de coração, o Atlético Mineiro, e vibra com a seleção brasileira.
As memórias tornam-se mais vivas, a voz da avó ecoa dentro da casa humilde, pequena, feita de madeira em um bairro operário.
“O riiii de Piricicaba, vai jogar água pra fora”... é assim que ela canta o sucesso dos anos 70, O Rio de Piracicaba, ou vez por outra uma canção assustadora que traduz a vida em horas, “A uma hora eu nasci, as duas me batizei”... até chegar o momento derradeiro... as doze estava no céu”.
A menina ouve a triste canção, e pede a avó que cante outra vez.
Nesta sala do sofá, do rádio, do cinzeiro, também tem um quadro com luz própria, uma fotografia dos avós. Ele com os cabelos penteados e aquele lindo bigode e ela com um vestido azul claro que se destaca no retrato e em todo ambiente.
Em uma parte tão doce das lembranças, surge a mãe. Mulher amorosa, de uma fortaleza e fé incomparável. Com paciência, ela ensina a filha a desenhar um João Bolinha. O bonequinho de bolas toma forma e vai crescendo a medida do tamanho do papel.
“Não se esqueça de colocar a boca, os olhos e o nariz”, orienta a mãe que também canta cantigas de rodas e para dormir, “boi, boi, boi, boi da cara preta” ...
O pai conta histórias, O Bode e a Onça, é a preferida da menina e de sua irmã que chegou um pouco antes dela completar dois anos.
O avô morreu dias depois de batizar aquela irmãzinha.
E o pai continua, conta histórias, faz mímicas, teatro de sombras e cabaninha, armada com lençol ou toalha de mesa cobrindo as quatro cadeiras que ficam na sala de jantar. Sonhos e fantasias...
As lembranças insistem em movimentar aquela mente e agora são bem coloridas.
“Maria fecha a porta que o boi já vem” ...
Próximo a casa onde moram, tem um gramado verde com muitas plantinhas “dormideiras” e as crianças brincam fechando suas portinhas, que por encanto, em um toque, pronto... a plantinha se fecha.
Na rua brincam de pega-pega, morto-vivo, roda.
A gangorra é uma corda grossa, dependurada em uma grande e frondosa árvore e o escorregador é um barranco inclinado, onde as crianças descem rolando pela grama abaixo.
Enquanto as crianças brincam, a avó e as vizinhas conversam na esquina. A mãe está em casa lavando roupas, em alguns momentos bate a roupa com tanta força no tanque que de longe se ouve aquele barulho estridente, também guardado na memória, “é pra sair o sabão”, dizia ela enquanto espanca a roupa.
Depois da brincadeira, a mãe espera as filhas para o banho, uma vez por semana ela mesmo se encarrega desta tarefa. Usa bucha vegetal, esfrega todo o corpo e insiste em dizer que precisa trocar a bucha, “está gasta”. O corpo fica vermelho ao término do banho, “Cascão é porcaria” diz orgulhosa ao ver a limpeza de suas meninas.
Agora a lembrança traz uma noite de magia.
É Natal!
“Vamos dormir que o Papai Noel já vai passar”, a mãe está eufórica, as meninas ansiosas dormem logo. No meio da noite, acordam e correm para a sala.
“Ah! Papai Noel!”
“Que bonecas lindas!”
“Nem esperou a gente acordar!”
“Pai, por onde ele passou?”
A família está feliz... reunida, transborda amor e alegria.
Do lado de fora, a noite é clara, as estrelas cobrem o céu e se confundem com o brilho daquela casa em uma vila operária de uma pequena cidade.
A paz reina naquele lar!
As memórias nos tornam quem somos e reviver estas lembranças trazem contentamento.
A mãe novamente grávida é levada para a Maternidade Municipal em uma Ford Rural da Companhia onde o pai trabalha.
Dias depois, embrulhada em uma manta vermelha, a mãe chega com mais uma menininha. A irmã mais velha pega no colo aquela bonequinha e sente o coração repleto de amor.
O primeiro dia de escola.
O uniforme é branco e azul marinho, uma merendeira azul de plástico com uma garrafinha onde a mãe coloca o suco, o guardanapo e biscoito de maisena, a pasta preta com cadernos e lápis tem alças e se parece com uma maleta usada pelos médicos.
A escola é grande e também fica na Vila Operária, o pó do minério de ferro está por todos os lados, para que a cidade não se esqueça que sobrevive desta riqueza mineral.
O pai leva a filha mais velha pelas mãos, seguem ansiosos e felizes. No portão da escola, uma mulher elegante vem em suas direção, é a professora. Ela pega a menina e juntas seguem para a sala de aula. Hora de aprender o “Beabá”.
A menina escreve seu nome e lembra da avó paterna. Ela é analfabeta, não sabe ler e escrever.
Todos os meses ao aproximar a data do pagamento da pensão deixada pelo marido falecido, e para não ter o constrangimento de borrar a folha de recibo com suas digitais, pega folha de papel de pão, uma caneta e treina seu nome completo incessantemente.
A letra é trêmula e o nome vai se construindo com dificuldade.
“Vó, um dia eu vou ensinar a senhora a ler e escrever!”
Neste momento a avó sorri.
As lembranças permanecem intactas, genuínas e aquecem o coração.
Assim como o pai e a mãe, a filha mais velha, tem crises de asma.
Ao amanhecer, a mãe percebe que ela está cansada e a respiração ofegante, tem febre. A crise fica mais forte, a menina está deitada na cama, seu peito estufado. A mãe carinhosa e preocupada observa e encontra forças para brincar, “eu acho que você engoliu um gatinho!”. O chiado está cada vez mais alto. O pai chega do trabalho e juntos partem para o hospital. Evaporação e injeção, a respiração começa a normalizar, a menina acalma e dorme tranquilamente.
O pai, atleticano fanático, leva a filha mais velha em um jogo no Mineirão. Ela já tem 8 anos e não consegue se conter de tanta alegria. Estão em companhia de quatro amigos que dedicam toda atenção e carinho a filha do amigo.
Já estão no estacionamento do Mineirão e uma multidão de torcedores caminham em direção ao gigantesco estádio entoando o hino e músicas de incentivo ao time querido. O coração quase sai pela boca.
Ao entrarem no estádio, o pai carrega a filha e a coloca em seu ombro, sobem a escada e então quase em êxtase a menina visualiza aquele lindo e imenso gramado verde, mil vezes maior que o gramado próximo a sua casa, onde as “dormideiras” se fechavam com o toque de suas mãos.
Nas arquibancadas milhares de torcedores cantam e agitam suas bandeiras. A menina sente arrepios e grita: “Galooo!” e pensa: “A partir deste dia torço contra o vento”.
A família é muito religiosa!
Desde cedo as crianças participam das rezas, terços, novenas, missas, procissões.
Em um antigo casarão com grandes portas e janelas, o assoalho de madeira range a qualquer movimento brusco e para não fazer barulho as pessoas pisam com delicadeza.
Os cômodos são enormes, bem diferentes da casa dos avós paternos.
A sala de estar possui móveis de madeira rústicos e nos sofás almofadas de crochê, uma cristaleira imensa que guarda linda e diversas porcelanas decoradas com finos detalhes.
A mãe logo alerta “Nem chega perto!”
O relógio na parede faz um barulho na medida que os ponteiros se movimentam, parece o pulsar do coração tranquilo quando a menina não está com crise de asma.
A cada hora cheia “cuc -cuu”, o cuco sai da casinha, como um mágico.
A casa pertence a sogra da tia, irmã da mãe e está cheia, é mês de Maria, as mulheres e crianças se reúnem para rezar o terço.
Uma das mulheres inicia a reza demorada. A menina, suas irmãs e primos ficam quietos sob o olhar das mães e ansiosos para que chegue a Ladainha de Nossa Senhora. Neste momento, ficam animados e a cada evocação a Nossa Senhora, respondem” rogai por nós” as vezes se exaltam e falam alto e são repreendidos pelos olhares das mulheres.
Terminando a reza é servido café com bolo e biscoito frito.
É domingo!
A casa da avó está cheia, filhos, noras, netos estão reunidos! As crianças brincam, os adultos conversam e contam longos causos, euforia. A avó está na cozinha preparando a refeição com ajuda das noras. A casa tem um cheiro peculiar...cheiro de família, cheiro de cuidado, cheiro de almoço de domingo!
O prato é sempre o mesmo; arroz, tutu de feijão, frango assado, maionese, macarronada. Quando servido todos param para saborear aquele “manjar dos deuses” com o poder de tocar não só o paladar, mais também a alma, tornando aquele momento imortal.
“Como você se lembra de tudo isto, menina?”
As lembranças narradas nesse momento são interrompidas com a pergunta da mãe.
A menina, agora mulher e mãe, pega a taça e toma um bom vinho.
A casa da mãe está cheia, é domingo!
Reunidos e unidos como sempre está a família.
O cheiro do almoço de domingo perfuma todo o ambiente.
O pai, a mãe, as filhas, e finalmente o filho “temporão”, “a rapa do tacho” que chegou quando a menina mais velha já era adulta, muito amado e paparicado por todos, os genros, as duas netas, enfim... namorados, tios e primos, fazem parte deste momento ímpar. Alguns já não estão presentes nesta mesa, já cumpriram sua missão nesta terra, mas continuam presentes nas lembranças que foram sendo arquivadas ao longo do tempo. As recordações de um passado agora distante, despertam a emoção e as sensações da memória afetiva.
São estas memórias que contribuem para que a família enfrente os desafios, as perdas e as tristezas com união e comemorem com alegria, abraços e sorrisos; a vitória!
O avô abraçando a netinha, a avó cantando com voz estridente a canção da meia noite, o João Bolinha, as histórias do pai, o gramado de dormideiras, a chegada das irmãzinhas, o dia de Natal, a primeira professora, a avó treinando o nome no papel de pão, o grito no Mineirão, a asma, a reza, o almoço de família no domingo, assim como tantas outras lembranças fizeram com que a filha mais velha tornasse uma mulher forte, bem sucedida, mas de coração e alma leve, ela bem sabe que aquela menina que foi permanece viva dentro dela. Quando está triste, pensa no avô, no abraço doce e intenso, daquela despedida dias antes dele tornar-se uma grande estrela no céu. Assim, continua caminhando cheia de esperanças e vontade de viver.
A conversa alta, as risadas, as pequenas desavenças e reconciliações, as histórias são enredos constantes de uma família reunida no dia de domingo.
E quando espantadas as pessoas, assim como a mãe, questionam como é possível que aquela mulher consiga lembrar e contar fatos ocorridos em tempos tão distantes, quando era quase bebê, ela para, pensa e tem a certeza que será impossível esquecer tudo aquilo que foi registrado em sua alma. Ela sabe que é “ A guardiã das memórias” e conservando estas lembranças todos que fizeram parte de sua vida estarão vivos, eternamente vivos!
Ana Paula Cruz