AS ÚLTIMAS PALAVRAS.
Carla Daniel está no ônibus, por sinal, lotado, linha Laranjeiras sentido centro. É manhã de segunda-feira, cidade de Sorocaba, verão.
O dia inicia-se frenético, trânsito absurdo na avenida Itavuvu, carros, ônibus, caminhões disputando espaço com motoqueiros desatentos.
Da janela do ônibus Carla Daniel observa a movimentação, está a caminho do supermercado onde trabalha há três anos como operadora de caixa, o supermercado fica próximo ao centro da cidade. O seu olhar é vago, distante de tudo, quase que em um transe hipnótico. Os pensamentos distantes, observando o movimento intenso na cidade, não percebe o movimento ao seu redor, não se dá conta de quem está entrando e saindo do ônibus, nem mesmo nota quem está ao seu lado.
Carla Daniel se sente sozinha na multidão, vaga ao ermo em suas muitas lembranças, do tempo em que havia tempo e alegria para coisas simples da vida, de se divertir, de namorar, festas, shopping, cinema, recordações distantes, dolorosas. O pouco tempo que lhe sobrava no presente momento eram ocupados pelo cansaço e os afazeres acumulados da casa. Morando sozinha, sem irmãos ou familiares próximos, sem namorado, sem animal de estimação, sem ninguém, tudo era por conta dela.
Carla Daniel está aflita, passa as mãos pelos cabelos lisos, longos, soltos, está visivelmente preocupada. Antes de sair de casa recebeu uma mensagem de voz de seu chefe dizendo que haveria reunião de desempenho. "Logo na segunda-feira", pensou. Pelo tom de voz do chefe coisa boa não sairia daquela reunião. A implicância e inveja de uma das operadoras de caixa com ela nas últimas semanas, o possível envolvimento extra conjugal dessa mesma colega com o chefe não poderia dar bons resultados para ela, ainda mais que Carla Daniel, por um acaso, descobriu o envolvimento dos dois.
O ônibus para, pessoas entram, outras descem. A monotonia de todos os dias.
A mulher que estava sentada ao lado de Carla Daniel levanta-se, é a última a descer, não percebe a movimentação, ela continua com os olhos do lado de fora do ônibus, os pensamentos ainda mais distantes, uma belíssima jovem senta-se ao seu lado, o aroma suave e doce do perfume faz Carla Daniel sair do estado hipnótico, ela olha de canto de olho, a jovem pareceu estar com uniforme semelhante ao dela, o que lhe chama a atenção para uma observação detalhada, Carla Daniel vira-se para ver melhor quem é sua companhia, admira-se ao perceber que a pessoa ao seu lado trajava o mesmo uniforme que o seu, certamente que uma das novatas que o chefe havia mencionado, pensou.
Um sorriso discreto, quase sem força de Carla Daniel para a moça, correspondido com grande intensidade, que também observa o uniforme de Carla, a moça toma iniciativa de um diálogo.
— Bom dia! Tudo bem?
— Bom dia.
Uma resposta forçada de Carla entre os dentes, os lábios lutam para desenhar a curva de um discreto sorriso.
A moça percebe que ela não quer conversar, ainda sim, ela insiste novamente, a moça sabe bem quão penosa é a profissão, havendo dias em que a vontade é de entrar em um buraco sem fundo. A conversa prossegue.
— Esse ônibus é sempre assim, lotado no primeiro horário? Meu Deus... Eu sempre trabalhei à tarde, é a primeira vez que pego o ônibus nesse horário, que loucura...
— Vá se acostumando, é sempre assim, haverá dias piores... Desculpe perguntar, você vai começar hoje lá no Barbosa? O Gustavo, nosso gerente, havia me falado que algumas pessoas começam hoje.
Antes que a moça respondesse, sabendo que o próximo ponto era o delas, ambas levantam-se, a moça estica o braço, aciona a campainha, o ônibus para, a porta é aberta, Carla Daniel segue a moça. Outras pessoas descem no mesmo ponto, ela e a amiga são as primeiras a chegar no trabalho.
Um discreto sorriso da moça para Carla ao descer do ônibus, a rua sem movimento, o pátio de frente ao supermercado vazio. Na entrada lateral que dá acesso ao interior da loja está o segurança, um senhor alto e forte, responsável pela guarda noturna e da liberação da entrada dos funcionários do turno da manhã.
Passos curtos rumo à entrada. Carla permanece silenciosa, a moça retoma a conversa respondendo a pergunta de Carla.
— Então, respondendo a sua pergunta, sim, começo hoje, seremos colegas de caixa. Prazer, o meu nome é Juliana, acabou que conversando nem me apresentei...
As duas param no meio do pátio, Carla verifica alguma coisa na bolsa, parece não encontrar o que procura.
— Eu ando tão desligada que nem me apresentei também, desculpe, prazer Juliana, o meu é Carla Daniel, bem vinda ao hospício, desculpe o meu silêncio, dias difíceis por aqui, você entende bem...
— Sei bem o que é isso Carla, trabalhei cinco anos no Central, três no Autêntica, menina, que loucura era aquilo. Não se preocupe, sei bem como é, há dias que você não está pra nada...
— Você trabalhou no central! Meu Deus! Me chamaram para trabalhar lá, não aceitei, se eu estou enlouquecendo aqui, nem imagino como seria por lá...
— Nem queira, pouquíssimos que não pedem conta naquele lugar... Então vamos lá né, começar essa nova etapa, não se preocupe, estou bem acostumada com hospícios.
— Boa sorte amiga para você. Vamos entrar, o Vitor já deve ter te mostrado tudo, então, fiquei a vontade, antes de iniciar vou ter que aguardar a reunião de desempenho, ninguém merece, logo na segunda.
— Aqui também tem isso... Achei que ficaria livre...
— Não foi dessa vez amiga. Mas, boa sorte.
As duas riem, se aproximam da entrada, Carla Daniel olha as horas, está mais descontraída, faltava meia hora para o supermercado abrir. Um discreto sorriso e um bom dia de ambas para o segurança, Carla vai na frente, Juliana a acompanha. O segurança também cumprimenta com um largo sorriso, um bom dia caloroso com aceno de cabeça, as duas retribuem com sorrisos. O portão é aberto, ambas entram. Juliana é uma jovem belíssima, chama a atenção do segurança, que não consegue disfarçar o encantamento com a beleza da moça, Carla passou de descontraída a tensa novamente aos primeiros passos dentro do mercado, olhou as horas pela terceira vez, Juliana percebe o nervosismo na face da colega de trabalho, evita puxar conversa com Carla.
Ambas desaparecem da visão do segurança corredor adentro.
Carla segue na frente da amiga, passaram o primeiro corredor, ao final, virando à esquerda, chegaram de frente ao pátio interno do mercado. Carla olha por alguns segundos enquanto caminha, o pátio está vazio, silencioso, seguiram reto, Carla está visivelmente mais tensa, a amiga tenta puxar conversa, Juliana conhecia bem quando se está no limite, a beira do próprio abismo.
— É a primeira vez que trabalho no primeiro horário Carla, todas as outras vezes sempre me jogavam a tarde, no começo achei terrível, depois eu fui me acostumando.
Carla Daniel se esforça para não ser deselegante com a amiga, embora não quisesse conversar, mesmo assim respondeu Juliana, desenhando um sorriso forçado no rosto petrificado pela tensão. No íntimo, nem ela mesmo entendia o motivo de estar tão nervosa daquele jeito.
— Não me imagino à tarde, já tentaram me colocar no turno da tarde, não aceitei, falei logo de cara para o gerente que se fosse pra ficar a tarde poderia me mandar embora...
— E aí, o que deu? Olha, eu não tenho coragem de falar assim com o chefe, sou muito na minha, quieta demais, mamãe diz que sou muito tapada.
— Eu tenho coragem de sobra, mas, nos últimos tempos tenho controlado esse meu lado de tanto mamãe ficar falando, ela diz que sou desaforada demais.
Ambas riem enquanto continuam a passos curtos pelo final do pátio, Carla e a amiga entram por outro corredor estreito, chegam no refeitório, lugar espaçoso, com duas mesas de bilhar ao centro e uma estante de livros em um dos cantos do salão. Duas televisões, microondas, puffs para descansar.
Os demais funcionários começam a chegar, primeiro o pessoal do açougue, barulhentos e brincalhões, acenam para as duas, crescem os olhos em Juliana. Depois o pessoal da mercearia e as meninas do caixa. Acenos, cumprimentos discretos, abraços. O gerente chega em seguida, sorriso no rosto, um "olá" para cada um que se encontra por alí, entra em seguida para sala de reuniões. Os líderes dos setores chegam em seguida, acenam, olham e adentram na sala. Carla perde o foco na fala da amiga, ela observa a sala da gerência, porta fechada, sabe que no momento em que for aberta, cada líder procurará os seus respectivos liderados para apresentar os gráficos de desempenho. Conforme as novas diretrizes da central, aqueles que tiverem baixo desempenho e muitas reclamações dos clientes poderão sofrer punições e advertências.
As implicâncias e inveja de uma das colegas com ela, o envolvimento dessa colega com o chefe das operadoras de caixa, que é casado, sendo que ela sabia do caso, certamente que não daria bons resultados para Carla. Alguma coisa lhe dizia que ela era o alvo da vez.
A reunião de desempenho termina vinte minutos depois, um a um cada líder de setor sai da sala da gerência, trocam palavras entre si, riem, brincando em tom descontraído.
O último a sair é o líder das operadoras de caixa, Henrique.
O sorriso muda automaticamente para uma feição séria assim que o chefe saiu da sala. Não há tantos funcionários no refeitório, o supermercado já está aberto. Henrique passeia os olhos pelo salão, parecendo procurar por alguém, até que visualiza o seu alvo, próximo aos livros.
Carla se preparava para iniciar o seu turno quando o olhar de Henrique cruzou com o dela. O semblante pesado era prenúncio ruim, Henrique fez sinal para que ela viesse à sala de reuniões.
Carla sabia que coisa boa não era, ainda mais depois da tal amiga que nutria desafetos passou por ela com ares de deboche e risos. As suspeitas estavam se confirmando, ela havia armado alguma coisa. A passos lentos Carla caminha em direção a sala, olhando firme e com dureza para Henrique, na sala ainda estava o gerente, Gustavo Guzzo, quebrando o silêncio.
— Bom dia Carla, tudo bem? Por favor, sente-se.
Disse apontando a cadeira em frente a sua mesa. Henrique ficou de pé, do lado esquerdo, de braços cruzados, não disse uma única palavra, permanecendo com o mesmo rosto de pedra.
— Bom dia Gustavo...
Carla estranhou no "bom dia", embora o seu interior quisesse desabafar tudo o que estava engasgado, tudo o que sabia do envolvimento de Henrique e a colega, todos os desaforos, as falcatruas de Henrique com os dados dos gráficos. Carla optou pelo silêncio, coisa que nunca fizera antes. Era um desafio quase impossível, mas, por algum motivo inexplicável, conseguiu domar a si mesma ao silêncio absoluto.
Gustavo estranhou, sabia que Carla era estourada, esperou por uns segundos e prosseguiu com a conversa diante do silêncio de Carla.
— Como já é do conhecimento de todos, adotamos novos procedimentos ao nosso método de trabalho. Esse novo método visando estudar nosso desempenho oferece gráficos muito confiáveis de nossa conduta profissional. Estou muito animado com os resultados obtidos, e com base nesses gráficos, decisões acertadas são tomadas para o nosso aperfeiçoamento. No entanto, o que me fez chamá-la aqui foi justamente o seu gráfico de desempenho. Veja você mesma.
Gustavo arrastou os papeis com o gráfico de Carla em sua direção. Carla Daniel não disse uma única palavra, pegou os papeis, olhando-os com muito cuidado. Ela sabia do absurdo que estava ali, nenhuma informação condizia com a verdade. Era tudo mentira, dados manipulados para lhe prejudicar. Carla sabia o que lhe esperava, certamente a advertência estava pronta. Henrique permanecia ao lado, antes dos dois dizer qualquer palavra, foram surpreendidos com as últimas palavras de Carla Daniel, simples, certeira, convicta e definitiva.
— Eu me demito...
Gustavo olhou surpreso para Henrique. Antes de abrirem a boca para dizerem qualquer coisa que fosse, Carla repetiu as mesmas palavras, em alto e bom tom, para todos os que estavam próximos, até mesmo os que estavam no refeitório ouvissem.
— Eu me demito.
Carla Daniel levantou-se, colocou o melhor sorriso no rosto, e saiu da sala, do lado de dentro, Gustavo e Henrique tentando chamá-la novamente para conversarem, mas, Carla deu de ombros, plena em sua decisão, antes de seguir para o RH da empresa, falou alguma coisa nos ouvidos de Juliana, surpresa com o que acabava de acontecer. Com um sorriso no rosto, sentindo que havia arrancado um peso das contas, seguiu para o RH da empresa.