PRÓLOGO

INVESTIGADOR DE PEQUENAS CAUSAS

O cachorrinho da senhora Pri latia toda vez que passava gente em frente ao seu portão. Digo isso porque era isso mesmo que parecia ser. Aquele era o seu portão e ele fazia questão de delimitar o espaço daquele jeito. Podia estar dizendo oi quer conversar comigo. Meu nome é Nestor, minha mãe me comprou quando eu tinha três meses de idade, desde então sou um cachorrinho muito feliz, muito embora nunca tenha cruzado com nenhuma cadela e olha que isso já faz dez anos. Au au au! Ou então poderia ser... Socorro, alguém me ajude pelo amor de Deus! Essa bruxa velha me bate todo dia, não limpa o quintal, tenho que comer minhas próprias fezes! Au au au! Bem, de um jeito ou de outro algumas pessoas, geralmente crianças ou idosos se assustavam com o Nestor.

Quando isso acontecia, eu dava uma risada rotineira enquanto observava aquela situação. A senhora Pri passava o dia ouvindo aqueles discos de rotação 38 que seu marido lhe dera no segundo encontro de namoro, isso em 1937. O fantástico dessa monotonia era se tratar de discos raríssimos da ópera os anéis de nibelungo. Acho que foi devido a esses dias monótonos que aprendi a gostar de Wagner. Aprendi que a música é capaz de alterar nossa percepção. Ela nos faz ter uma vida interior inestimável ao ponto de o mundo passar a nossa volta sem que nos notem. Isso é bom, principalmente para um espião de pequenas causas. Dito isso, agora, neste instante, pode parecer elucidativo demais, porém garanto, nada é mais anômalo do que essa atividade em pleno século vinte um.

Sei de histórias que muitos duvidariam a existência. Mas como tudo é possível num mundo globalizado, reparar nas situações mais estranhas pode se tornar uma aventura, uma obsessão. No meu caso, garanto-lhe, são as duas coisas. Aventura e obsessão, obsessão por aventura, uma aventura obsessiva.

A senhora Pri, não é a minha investigação do momento, mas de tanto vê-la pela fresta de minha janela, acabei me acostumando a investigá-la. Certamente um dia, num dia desses de final de campeonato, poderei dizer o que ela trás de si de segredo, mas não agora, neste momento. Essa foi só uma daquelas olhadinhas rotineiras, como quase tudo que faço em minha vida de espião de pequenas causas, coisas do tipo: Oi, tudo bem! Bom dia! Como vai sua tia! Essas coisas, que é pra não dar pista das coisas que realmente faço. Aliás, ninguém por aqui na vizinhança sabe o que faço. Digo a eles que sou web designer. Eles balançam a cabeça levantando as sobrancelhas e logo olham para o chão, deixando uma dúvida no ar: Que merda é essa? Assim vou seguindo minha atividade com toda liberdade possível, sem levantar suspeitas, apenas meras dúvidas em pessoas, que... sinceramente, não saberiam dizer qual a diferença entre um triangulo isósceles de um eqüilátero.

De certa forma, saber que as pessoas são mais ignorantes do que você já é um conforto salutar, ainda mais sabendo que tal ignorância vem dessas pessoas, alvos de minhas investigações. É realmente uma tarefa cômoda para um sujeito como eu, anômalo, mas ciente de minha ignorância.

Bem, tenho muita coisa a fazer, sem meus relatórios diários e rotineiros, nada nessa pequena cidade funciona. A responsabilidade de um espião de pequenas causas vai além do tamanho de suas investigações.

Daqui a cinco segundos meu telefone grampeado vai tocar e uma voz macia, porém direta de mulher vai me dizer:

- Bom dia!

- Bom dia!

- Quem é o responsável pelo uso da internet?

- Sou eu mesmo.

- Como quer que nós o tratemos: de senhor ou de você?

Vossa Excelência estaria bom pra começar.

- Como senhor?

- De você, é claro!

- Não, senhor, somos da telefônica.

- Pois, não.

- Você já conhece o speedy?

- Conheço.

- Nós estamos com uma promoção, você está interessado?

Obs.: Diga logo não, pois se disser querer ouvir sobre a promoção, irão te atazanar por quase uns quinze dias, quase todos esses dias, querendo vender o speedy.

- Não, obrigado.

- Mas está com um preço ótimo, além disso você receberá o modem grátis e o dobro de velocidade.

- Não, no momento meu orçamento não permite.

- Mas está saindo apenas R$29,90 por mês...

Obs. 2: Este preço é só pelos primeiros dois ou três meses, depois o preço dobra ou triplica.

- Mesmo assim agradeço, mas no momento não me interessa.

- Você gostaria de estar pensando uns dias e depois tomar uma decisão?

- Não sei, acho que não.

- Qual o melhor horário para você receber nossa ligação?

- Pode ser na hora do almoço.

- Está bem então, amanhã retornaremos a ligação. Tenha um bom dia e obrigado.

- Bom dia pra você também.

Tenho para mim que não existe prova ilícita, o que existe são fatos ilícitos e pessoas mal intencionadas. As segundas se bastam pelos primeiros, o que já é o bastante para mim.

Como posso dizer... tem coisas que são tão óbvias que até uma criança com sérios problemas de articulação vocal são capazes de dizer sim com a cabeça. Mas o mundo da investigação de pequenas causas não é um mundo para crianças, muito menos para grandes dúvidas. Contudo, existe uma máxima no meu ramo de atividade: pequenas descobertas; grandes segredos! Aquelas estão para à ciência, assim como estes estão para Deus. Não, não sou gnóstico. Acredito piamente na evolução dos macacos e no instinto de preservação dos tubarões, praticamente um fóssil vivo, cuja única preocupação é se alimentar e se reproduzir, nada de emocionalidades, nada de moralidades, viver e nada mais.

Continua...

Doutor Abreu
Enviado por Doutor Abreu em 08/01/2008
Código do texto: T807913