Cavernas
Ele recebeu um livro por encomenda. Desceu até à portaria do prédio, pegou a caixa e voltou ao seu apartamento. Verificou o remetente e era desconhecido, pensou se tratar de engano, verificou o destinatário e era ele mesmo. Tudo ok.
Abriu a caixa, era um livro, usado, tipo de sebo, antigo e com páginas amareladas. O tipo de livro que gostava. O remetente com certeza o conhecia bem, pois era um livro de Camus.
Imediatamente, levou o livro até sua mesa de trabalho, acendeu a luminária para perscrutar todos seus detalhes. Na folha de rosto uma dedicatória de 19…, essas dedicatórias era o que ele também apreciava em livros usados de sebo.
Verificou a editora, ela não existia mais, verificou no google que ela falira depois de tentar uma recuperação judicial. “O mercado é cruel”, pensou. “A vida é cruel”, arrematou.
Passou a folhear suavemente as páginas. Encontrou o trecho que adorava no livro e leu em voz alta:
– Sempre me pareceu que nossos concidadãos tinham duas paixões desenfreadas: as ideias e a fornicação. Duas ideias lhes bastarão para definir o homem moderno: fornicava e lia jornais.
E gargalhou alto da mesma forma quando gargalhava ao ler esse trecho. Lembrou de Ângela, sua primeira experiência sexual, a mulher que o introduziu na literatura e filosofia. Lembrou que lia esse trecho com grande alegria para ela, aquela alegria juvenil de quem está começando a descobrir coisas novas. Ele dizia para a mulher:
– Você me pegou pelas mãos e me tirou da caverna! Você me mostrou um mundo colorido e cheio de vida!
Ângela ria de sua ingenuidade. No entanto, ela entendia aquela empolgação juvenil, entendia e sabia necessária. E Ângela o educava da melhor maneira possível, com filosofia e sexo.
O dia em que ela se despediu dele para ir morar nos Estados Unidos foi quando ele descobriu Goethe. Pensou em suicídio, mas Ângela sabia que ele não tinha nem coragem e nem liberdade, mas apenas estava curtindo a onda do jovem Werther.
E agora ele lembrava de Ângela por causa de Camus. Chegou mesmo a pensar se tratar de alguma brincadeira de algum amigo.
Mais tarde recebeu a visita de um amigo. Preparou um café e conversavam sobre livros. Ele pegou o Camus antigo e lhe contou como o havia recebido. Leu em voz alta novamente o trecho preferido e falou sobre Ângela.
– Ela devia ser uma mulher inteligente. – Disse-lhe o amigo enquanto ele mesmo folheava algumas páginas de Camus.
– Sim, uma mulher incrível…
– Você nunca mais a viu? – Interrogou o visitante com curiosidade.
– Desde aquele dia que ela partiu para os Estados Unidos, foi a última vez que a vi. Aprendi muito com ela, cara. Filosofia, literatura e sexo, muito sexo.
O amigo ria e com nostalgia emendou:
– Isso foi há muito tempo, meu velho. Hoje ninguém mais se interessa por essas coisas. – Deu uma gargalhada.
Ele também riu quase engasgando com um farelo de torrada.
– Contudo, essas coisas ainda estão por aí, não? – Disse ao amigo visitante enquanto limpava a blusa jogando alguns farelos de torrada no tapete. “A norma vai me matar”, pensou na mulher quando visse seu tapete cheio de farelos.
Despediu-se do amigo e correu para limpar a bagunça antes que Norma chegasse. A mulher era obcecada por limpeza e detestava bagunça. E como ele estava aposentado e arriscava-se atualmente em escrever alguns contos, ficava mais tempo em casa do que a mulher.
Depois de limpar a bagunça, voltou ao seu escritório – na verdade um terceiro quarto – para continuar a escrever. Contudo, sua mente perdeu a concentração, não conseguia parar de pensar em Ângela.
O seu celular vibrou. Pensou ser Norma, mas o número era desconhecido. Atendeu, voz feminina.
– Olá, como vai, Alberto?
Ele reconheceria aquela voz de qualquer jeito. Era ela, Ângela.
– Ângela? É você mesma?
– Nossa! Você não esqueceu minha voz! – disse com uma surpresa verdadeira.
– Jamais a esqueceria.
– Estou no Brasil, perto de você e gostaria de vê-lo. – disse da mesma forma que sempre dizia no passado, sempre direta, objetiva.
Uma pausa. Silêncio. E Alberto enfim disse:
– Claro, podemos nos ver.
– Quando? – perguntou a filósofa.
– Agora? Já…
– Ótimo, estou naquele bistrô da praça K… Não demore, pois estou voltando aos Estados Unidos amanhã de manhã.
Alberto desligou. Deixou um bilhete para Norma com alguma desculpa que ela não acreditaria. Desceu em disparada, entrou no carro e partiu para o bistrô. Chegando no local a viu em pé na entrada do bistrô. Continuava bela, imponente, elegante. Ela o viu e sorriu em sua direção.
– Ângela…
– Alberto, gostou do Camus? – com um sorriso irônico revelou o mistério do livro.
– Ah, foi você! Sim, adorei!
– Alberto, não tenho muito tempo e sei que você também não. – disse enigmática.
– Como assim?
– Estou aqui para tirar você pela segunda vez da caverna que você se enfiou. – filosofou.
– Caverna? Do que você está falando, Ângela?
– Ora, pare de ser dissimulado, você sabe muito bem do que eu estou falando. – seus olhos o desafiavam.
Alberto silenciou-se. Encarou-a. Respirou fundo e disse medrosamente:
– Sim… eu sei.
– Então, segure minha mão. – ela ordenou. – Olha para mim. Você está pronto?
Alberto apertava a mão da mulher, levantou os olhos e a encarou novamente. E agora decididamente falou:
– Sim, Ângela, estou pronto!