Revés

Na pequena cômoda do quarto não havia lugar para mais nada: nem um vasinho de flor, um porta-jóias, uma caixa de pó de arroz. Era só imagem de santo. No centro, ficava a Nossa Senhora Aparecida, com uma vela perto, permanentemente queimando. Pedia pelo marido, que lutava contra o câncer no quarto ao lado. A vida de casada não era nem boa nem ruim: era o que tinha que ser. Nenhuma grande demonstração de afeto, os filhos, que foram vindo, e que agora se espalhavam pelo mundo __ um em cada canto, cinco ao todo. Ficaram sozinhos. E houve aquela combinação tácita de que um cuidaria do outro. Ele trazia a linguiça e as mangas que ela gostava. Ela fritava a linguiça e comiam juntos, em silêncio, tendo as mangas por sobremesa. Quando ele adoeceu, ela entrou em pânico. Não imaginava a vida vagando pela casa vazia. Ninguém sentado ao seu lado na hora do Jornal Nacional. Nem a pergunta invariável toda manhã "Comprou pão de sal?". Pegara-se com os santos, que eles não a enviuvassem. Que eles o curassem porque não saberia viver sem a sombra daquela presença. Hoje ia na igreja acender as velas, uma pra si outra pra ele, dois reais cada. Demorou-se lá dentro, o rosário deslizando entre os dedos. Terminadas as preces, cruzou a porta distraída, sem reparar nos dois vultos que se aproximavam. Enquanto um enfiava a faca, o outro arrancou a bolsa e saiu correndo em disparada. Foi rolando escada abaixo, o sangue pintando as pedras, as contas do terço desmanchado pulando alegremente os degraus, espalhando-se para todos os lados.

Ana Deister
Enviado por Ana Deister em 10/05/2024
Código do texto: T8060293
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