Despertar premente

Está tão escuro aqui! Parece que apagaram todas as luzes dos postes da cidade, das lâmpadas das casas, até parece que as estrelas e o Sol e a Lua cheia estão apagados. Tudo escuro. Escuro tudo. Tudo aqui profundamente apagado. E só um silencioso silêncio que escurece a audição, os olhos, o tato, todo o meu corpo.

Eu não quero ir embora, mas disseram-me que o ônibus já está quase de saída. Não sei como vir parar nesta rodoviária pra pegar um ônibus que não sei qual é, e a plataforma certa não tem número nem algo que a indique e nem sei por que a chamam de “plataforma certa”; não sei aonde irá o ônibus, não sei se há outros passageiros (e mesmo que haja outros passageiros, o que eu saberia deles, quando nem sei direito de mim); não sei que estrada o ônibus irá pegar, não sei por que tenho que ir agora nesse ônibus, pois não quero eu ir nesse ônibus e nem em ônibus algum, não quero ir a lugar nenhum agora, não quero saber de percorrer nenhuma rodovia que conecta um ponto a outro, um lugar a outro, uma cidade a outra, uma estrada a outra estrada, quando na verdade não quero percorrer e nem conhecer estrada alguma, “Eu sou o caminho, o ônibus, a vida”. Essa citação está correta? E há algo correto neste mundo? Só quero ficar aqui mais um pouquinho, perto da minha mãezinha e dos meus irmãos.

João, Joãozinho? Cadê o meu filho, Pai? Por que não consigo ver o meu filho, Pai?

Teu filho tá bem, meu filho, não se preocupe.

Como não me preocupar, Pai, se não sei o que tá havendo aqui. Eu não quero partir, Pai, não quero ir embora. Mãe, me deixa ficar mais um pouquinho com a senhora, acho tão bom tá perto de você, mãezinha. Lembra-se, mãezinha, quando o Gilli e eu pegávamos latas de leite Ninho, enchíamos as latas com areia molhada, fazíamos um furo na tampa e outro furo no fundo da lata, púnhamos um arame como se fôssemos costurar a lata e depois amarrávamos as pontas das extremidades daquele fio de arame com um barbante forte e criávamos carrinhos de lata que puxávamos ao longo daquela estrada esburacada na nossa rua? Eu recordo tudo. Não podíamos ir muito longe de casa, porque a mamãe tinha medo de que alguma coisa ruim poderia ocorrer com a gente, já que era tanta notícia ruim propagada pelos jornais impressos e da televisão, então tínhamos que voltar daquela estrada e quando voltávamos sempre estava lá a nossa casa, os nosso vizinhos, os nossos amigos, a nossa mãe com aquela cara meio braba, mas o coração feliz e sorridente porque estávamos seguros agora, estamos em casa mãezinha, estamos com fome, mãe, morrendo de fome. E nossa mãe pegava bananas, cortava-as, colocava-as no liquidificador e misturava com leite e um pouco de açúcar e com outras coisas e bebíamos aquele vitamina tão simples e tão bem feita pelas mãos calejadas e amorosas de nossa mãe, pois víamos no silêncio do olhar dela e nas marcas no teu corpo, minha mãe, víamos o quanto você nos amava e sempre se sacrificava trabalhando tanto para pagar as contas da casa, comprar comida, roupa, material escolar pra gente e tantas outras coisas, sempre buscando dar o melhor que a senhora podia oferecer a uma casa com sete filhos e um Pai sempre ausente.

Lembra, meu irmão, desses carrinhos de lata que eram nossos brinquedos porque o Pai nunca estava presente em nossa casa e, quando estava lá, vivia embriagado e batia na mamãe e nas nossas irmãzinhas? Lembra-te disso, meu irmão? A gente saía pela rua com nossos amigos, cada um com seu carrinho de lata, e brincávamos tão jubilosos com aquelas latas como se fossem os brinquedos mais caros e incríveis que os pais poderiam ter comprado em lojas de marca. Era tanta pobreza em nossa vida que éramos ricos de ausências, éramos ricos de tantas misérias, mas estávamos vivos e com saúde e havia sorrisos que reluziam em nossas faces e no metal dos carrinhos de lata de leite quando a luz do sol batia neles e em nós, e era uma luz ardente e gostosa de sentir, era uma luz que só os que estão mortos sabem o que é e sentem faltam porque eles não tem mais nada quando eles perdem não só essa luz, eles perdem tudo o que há e o que acontece aqui neste mundo de comércios, de movimentos com os olhos e com os braços, de escolas uniformizadas, de igrejas com seus hinos, bíblias e certezas, de anúncios com seus produtos indispensáveis.

Vem logo pra casa, bandu de desobidientis, já pra casa, cambada de meninu, dizia nossa mãe.

Estou perguntando há um século cadê meu filho, Pai, onde está ele agora?

Filho ele partiu.

Como assim “Filho ele partiu”? Você deveria saber do meu filho, Pai, porque ele te amava tanto. Sempre foi assim: o que se esperar de um Pai que diz amar aos seus filhos como uma galinha ama seus pintinhos? Pai de verdade não precisa de que acreditemos nele para ser pai, não espera que sejamos obedientes e bons filhos para só assim ele poder ser e agir como um bom pai. Pai, quando ama de verdade, ao ver milhões de filhos doentes os curaria, não importa se merecem ou não, se são obedientes a ele ou não, Pai quando ama de todo coração, em espírito e em verdade, ao ver suas criancinhas com câncer cerebral, com leucemia, não ficaria esperando louvores e adorações em templos; Pai de verdade, que está em todo lugar, onipresente, ao ver que perversos homens vão raptar e estuprar meninas de 9, 10, 12, 14 anos de idade, Pai que ama não deixaria que isso acontecesse, não ficaria só olhando como se fosse um tarado de um voyeur que parece sentir prazer em ver menininhas sendo violentadas e enterradas em covas rasas. Que amor de Pai benevolente e sagrado é esse (deveriam mudar o real sentido destas palavras “benevolente” e “sagrado”), pois só há omissão e descaso deste Pai.

“Eles serão punidos no outro mundo”, que desculpa esfarrapada é essa, porque sempre que alguém morre ou é assassinado de forma tão trágica, de forma tão absurda, tão precoce e violenta, quando o Pai, cuja essência é o amor, pode curar qualquer filho doente, pode evitar qualquer assassinato que ainda vai ocorrer, pois se a justiça e o amor do Pai só podem ser efetivados depois que o ato ímpio ou trágico ocorre, a justiça Dele não é nada diferente das investigações criminais e dos tribunais do ser humano. Quando nenhum pardal é abatido do céu e nenhuma folha de uma árvore cai sem a aprovação do Pai, (Este aprovou milhões de judeus assassinados, pandemias e epidemias, chacinas e mais chacinas, pois é mais importante o cumprimento de uma “profecia” do que a vida humana em si), nada ocorre sem que o Pai não o consinta, pois tudo foi devidamente determinado antes que todas as coisas viessem a existir, afinal o cordeiro foi morto (não morreu, foi morto, fique bem registrado e compreendido aqui), foi morto desde a fundação do mundo, logo tudo o que houve (de bom ou ruim) e que acontece neste mundo não foi só visto pela presciência do Pai (como ele pode ver tudo o que não ocorreu, pois se não ocorreu?) Porém, o Pai vê tudo o que ainda vai ocorrer porque o Pai já havia estabelecido e escrito tudo o que ocorreria, por isso Ele via a tudo e sabia de tudo de antemão porque tudo Ele escreveu, criou e assim o fez. O Pai respeita o livre-arbítrio de seus filhos? Dos filhos que a uns destinou como vasos de honra e a outros condenou como vasos de desonra? Pois os joios são filhos do maligno e os trigos são filhos da graça? Uma vez que encerrou a todos debaixo da desobediência, a fim de com todos usar de misericórdia? Claro que o Pai é bom e justo. É? Será mesmo?! Ou a ideia da bondade e da justiça e de outros predicativos é que são atribuídas ao Pai por conta não de evidências empíricas e irrefutáveis, mas da subjetividade da crença de cada um? O Pai deu-nos livre-arbítrio mesmo sabendo, previamente, que usaríamos esse mesmo pseudo-livre-arbítrio para criar guerras mundiais, violentar mulheres, para mães asfixiarem seu filho que chora demais, para fabricar armas de destruição em massa, para sacrificar vidas em nome Dele quando ele poderia bradar dos céus “Basta de tanto sangue derramado.”; livre-arbítrio usado para roubar e matar comerciantes e médicos e professores que pararam perante o sinal vermelho bem ali no semáforo, livre-arbítrio de garotos que entram em escolas e metralham colegas e professores, livre-arbítrio de médicos que fazem todo o possível para curar seus pacientes, mas a enfermidade é letal, livre-arbítrio de anjos que foderam mulheres na terra e seus filhos eram "nefilins" e por isso o Pai se arrependeu de ter feito o homem e enviou o genocídio do dilúvio para dizimar homens, mulheres, crianças, animais e seres inocentes, por conta do pecado dos seus amados anjos e todo esse discurso apologético do livre-arbítrio tem como preciso intuito sempre jogar a culpa toda no ser humano ou no querubim chamado Lúcifer(ambos criados pela infalível onipotência e onisciência do perfeito Pai das Luzes) por conta das maldades praticadas, pelas calamidades causadas contra o planeta Terra. Como o livre-arbítrio é a possibilidade de escolher o bem ou o mal, o Pai nos deu também o mal como escolha; por conseguinte, o mal já existia antes de existirmos, afinal como pode o Pai nos dar o bem e o mal se não estiver já criado o bem e o mal antes para que assim se possa escolher?

Pai, eu te amo, mas tu não fazes sentido, porque nem existes e nem és. No máximo és Tu uma fábula de um conto de outro conto contado por incontáveis contos mesclados.

Tu vives embriagado aí em teu mundo inacessível, por isso tu olhas e pouco ou nada vês e se vês algo, por que se importar já que és imortal e Todo-Poderoso quando somos apenas formigas e insetos esmagados pelos passos ébrios deste Pai órfão e embriagado, que faz pactos conosco há milênios e mesmo que a gente cumpra as leis da velha e da nova aliança, Tu não cumpres o que prometeste a nós, provando que és tão mentiroso como nós também somos várias vezes(pelo menos eu nada prometo aos meus filhos e nem digo aos quatro cantos do mundo sobre o quanto sou tão bom, tão justo, tão compassivo, tão benevolente, tão misericordioso, tão amoroso! Vemos nos hospitais e nas ruas todos os teus rios de misericórdia e compassividade e de justeza!!!), pois as tuas eternas promessas são típicas promessas de todos os que só almejam o poder, o controle e a glória a fim de continuar imperando, ó Grande Imperador e gerador de tanta dor, imperando nos corações de quem te teme, ainda que saiba eu que milhões te amam assim como eu te amo, Pai, todavia não mereces Tu a nossa confiança, nem nosso respeito, nem nossa benquerença, nem o nosso amor.

Por favor, alguém acenda alguma lâmpada nesta casa, pois não consigo ver nada. Pai... Paaaaaaaaaaai. O que está havendo, por que ninguém nesta casa me responde?

O filho ele morreu.

Você já me disse isso antes.

Você não entendeu ainda, seu fedelho?

Entendeu o quê?

Você, meu filho, foi você quem morreu.

Como eu morri se estou aqui a falar contigo?

E por que tu estás e consegues falar comigo, já pensou sobre isso?

Porque...

Por quê...

Porque você também morreu, porque tu não existes mais, assim como eu.

Finalmente compreendeste. Já era tempo.

Tempo? Tempo? Que tempo temos aqui? Acabou o meu tempo, acabou a minha vida, tudo morto, morto tudo.

Isso é verdade, filho.

Não me chame de filho, não sou teu filho. Tu nunca tiveste filho algum, pois a todos os teus filhos tu sempre desprezaste e abandonaste.

Onde está teu filho agora?

Céus. Meu filho, meu querido e amado filho: nunca mais vou vê-lo: ver a formatura dele, vê-lo em seu primeiro emprego com carteira assinada, vê-lo se casar e ter com sua esposa, quem sabe, meus netos, abraçá-lo ternamente nos natais, nos aniversários dele, eu tinha comprado um presente tão bonito pro aniversário dele neste ano. Tudo acabou. Tudo foi embora. Tudo voou pra tão longe que nada se consegue ver e alcançar.

Isso também é verdade, meu filho.

Cala a boca, filho da puta: não sou teu filho. Ao filho a gente ama, a gente cuida, ao filho a gente protege, ao filho a gente ensina a andar nos primeiros passinhos, a comer, a ler, a ir à escola, a vestir a roupinha pra ir a algum lugar, ao filho a gente abraça porque estar presente é indispensável, ao filho a gente nunca abandona, não importa quantos desgostos ou alegrias eles nos tragam, pois os filhos a gente nunca desiste deles, porque sempre amamos os nossos filhos. Os filhos não precisam ter fé no amor dos seus pais, pois os filhos veem por si mesmos esse amor, eles tocam esse amor, eles abraçam esse amor, e nós, pais de verdade, alimentamos esse amor todo dia, seja quando estão doentes e os levamos ao médico, seja quando estão tristes e vamos lá conversar com eles, seja quando estão entediados e saímos com eles para nos divertir, seja quando se machucam e é como se o corte a ferida se formasse dentro da gente, e lutamos e laboramos todo dia para dar o melhor que podemos aos nossos filhos, pois eles são tudo pra gente. Mas tu, Pai, tu és tão útil a nós quanto uma seringa de morfina no braço de um viciado, ou como um cachorro que foi atropelado por um motorista bêbado (tu és este motorista.)

Tu sabes que esta conversa é inútil, pois mortos estamos nós e tudo continua a funcionar e a prosseguir lá em cima, não sabes?

Nem na morte remorsos e arrependimentos tens tu, Pai.

Deixai de tanta dramaticidade. Os humanos vão continuar me adorando, de uma forma ou de outra, seja quando descobrirem um tumor no cólon, ou estiverem a fazer hemodiálise, ou quando uma mãe perde o filho caçula de dez anos que foi torturado e estrangulado pelo padrasto, seja em qualquer momento ou circunstância de ventura ou de desgraça, eles, pobres idiotas covardes, eles sempre se voltarão a Mim e vão acreditar em mim, porque Eu sou o supremo Pai, aquele que tem a chave (ou um obtuso canivete suíço) das respostas e dos consolos apropriados que eles mesmos criam para si mesmos ou que acham que eu disse por meio dos profetas e escritores que se diziam ser inspirados por mim ao escrever seus livros sagrados e que buscavam explicar o inexplicável.

Se eu disser que nada és Tu, isso já seria ser alguma coisa, porque nada ser é ser algo já que “nada” é uma coisa, mesmo que pensada como uma abstração ou como uma ausência de qualquer coisa. Não chamar-te-ei mais de Pai porque seria desonrar os verdadeiros pais que há neste mundo árido. Chamar-te-ei de “inexistência”, de “insuficiência completa”, de “ausência absoluta”, Tu és tão somente a "Anulação": quem buscar unir-se a Ti, anular-se-á a si mesmo em prol de uma ilusória e irreal crença no nada a fim de obter nada, por amor a este divinizado Nada-Pai ou Pai-de-Nada, e será abraçado, abençoado e redimido pelo sangue quimérico e mitológico do nada e viverá não-vivendo e nem-existindo no paraíso da Anulação, e todos comerão, ou melhor, serão comidos e devorados pelo Pão do Nada, e continuará para sempre lá anulado-inexistente-irreal-impossível-nada, pois quem se vincular em um só corpo com a "Anulação", anulará a dádiva da vida, não só será uma extinção da sua própria vida, será a mais vil e a mais torpe traição e inconfidência que um ser vivo poderia praticar por meio deste pacto, deste conúbio com a desprezível Anulação. Anulação Tu és e sempre Tu foste e continuarás Tu a ser, mesmo não-sendo nada.

Não me importo com o que pensas e dizes sobre mim. Não me importo com ninguém e nem com nada. Apenas finjo ter compaixão.

Como finges compaixão ou ter qualquer outro sentimento, se nunca Tu exististe como também jamais foste e nem nunca és? Como nunca não-sendo podes fingir ser ou sentir alguma coisa?

E onde está o teu filho, teu único filho que dizes tanto amar?

Meu filho, meu tão precioso e querido filho que tanto amei e ainda amo: sei que não consegues me ouvir de onde estás, sei que pensas que mesmo morto eu não sentirei mais nada por ti, porém saiba que eu te amo com todas as minhas forças, com toda a minha alma eu te amei, com todos os átomos e moléculas que formaram meu corpo eu sempre te amarei. Eu sei que você sabe que eu fiz o melhor que pude fazer; perdoa, filho meu, perdoa-me às vezes que fui ausente ou se falhei em algo contigo; filho, mesmo fazendo hemodiálise, mesmo com as doenças que me afligiam, eu sempre lutei por ti, eu nunca desisti de ti meu filho, porque se você enxergasse todo o amor que tenho e sempre terei por ti... você foi e vai continuar a ser o melhor e mais bonito, o mais sublime e miraculoso sonho real, fisicamente real, que realizei. Onde estiveres, ali estarei em ti e dentro de ti, filho.

Filho, meu espírito é tua carne, assim como tua alma é meu sangue e minha centelha nunca se apagará em teu ser. Vivam as vossas vidas sem prender em pranto e dor vossos olhos ao olhar o caminho pra trás e nem busquem afogar em tristeza, mentiras e desesperança ao encarar o que ainda está por vir.

Preciso dormir um pouco. Mãe, pai, irmãos e irmãs, tenho tantas saudades de cada um de vocês, e mesmo morto a dor de estar longe de vocês é excruciante, é indizível na verdade. Chega de tanto falar e pensar (eu nem sei como é possível estar eu pensando e falando e sentindo tanto, mas estou e sou, sou ainda.) Vou dormir um pouco, mãe, amanhã que não sei quando é ou quando será ou se é ou se será, amanhã a luz do sol vai escalar muros e paredes e brilhar em vosso lar; os passarinhos vão cantar nos fios dos postes e naquela esverdeada mangueira, lindas borboletas vão bailar nas flores da nossa mãe, um dia novo cheio de sol e de caminhos vós tereis. Aproveitem vossas vidas! Vivam as vossas vidas!

Amo-te, meu filho, amo-te incomensuravelmente.

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 01/05/2024
Reeditado em 02/05/2024
Código do texto: T8054070
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