Clube dos contos 

 

 

O crime  do Almirante

Eu  saí do estacionamento onde deixei o carro já atrasado para o horário combinado. Eu tinha marcado com o vendedor do sebo, onde buscaria um exemplar de um livro antes do fechamento da hora e sabia que não conseguiria chegar a tempo. O dono do estabelecimento era criterioso e fechava às 5h . Mas o trânsito estava horrível para chegar ao centro da cidade. 

Como previ,  dei com a loja fechada e a edição que tanto almejava do livro O retrato de Dorian Gray ficaria para o outro dia. 

Era inverno e a noite já queria chegar ,  as luzes da cidade começaram a acender naquele dia com densas nuvens no céu. 

Voltando devagar para o estacionamento, avistei aquele antiquário  que sempre frequentava com minha esposa e resolvi entrar. Talvez encontrasse algo para levar para Agatha , de surpresa.

Olhando tudo ao redor não consegui achar nada de interessante. E ao chegar no fundo da loja observei algo coberto por um pano, podia ver no chão que era uma moldura bem trabalhada. Pensei ser um quadro e resolvi remover o pano. Para a minha surpresa era um espelho. E ao me pôr em frente, para minha surpresa vi refletido a imagem de um homem jovem. Ainda olhei para trás pensando ser o reflexo de outra pessoa mas era eu mesmo pelo menos 40 anos mais jovem. De súbito, me afastei. Verifiquei se havia alguém próximo para testemunhar o meu desespero. A loja estava vazia. Peguei o pano para cobrir de novo mas não podia deixar de olhar novamente, tamanha curiosidade. 

E desta vez vi refletida minha imagem vestida numa farda de Almirante. Assustei-me e cobri rápido o espelho. 

- Que diabos tem aquele espelho ? - perguntei ao vendedor, já suando e com as mãos geladas. 

- Não sei. Nunca olhei nele. Só sei que as últimas três pessoas que o compraram , devolveram logo em seguida, sem reclamar um tostão. 

Que coisa era aquela? Ninguém sabia daquela farda ! 

Estava tão perturbado com a imagem que resolvi comprar o espelho. Um ato impensado creio, mas uma curiosidade extrema. Antes de pagar o vendedor me deixou a sós com o objeto, do qual, descobri novamente e pude ver novamente minha imagem jovem, vestido de Almirante e atrás de mim, uma figura de uma mulher. Leonor. O amor da minha vida. Por quem fiz as maiores loucuras da juventude.  Tive o mesmo ímpeto da outra vez, olhar para trás, na busca da mulher amada. E ninguém estava lá. Paguei pelo espelho e voltei correndo para casa.

Disse a Agatha o que o espelho fazia e ela quis se olhar. Ela via refletida a bailarina que foi um dia no palco, rodopiando e se maravilhou.  O curioso é  que eu olhava junto com ela e não via a transformação,  só via a mulher que envelhecia  com muita beleza e zelo. Então era isto, o espelho só refletia o passado da pessoa a sua frente. De alguma forma fiquei aliviado. Levamos o espelho para o quarto e fomos jantar. Agatha voltou ao quarto logo depois, retornando triste e chorosa. - Leve este espelho daqui - disse-me ela. - Acabei de me ver no hospital com as pernas quebradas depois do acidente. Não quero ver mais nada. Este espelho é  amaldiçoado. Eu a abracei carinhosamente. 

Com ela já dormindo ao meu lado, o abajur ainda ligado voltei a olhar-me no espelho. E para minha surpresa estava eu lá, vestido com a roupa de Almirante sobre o corpo de um homem,  enfiando uma faca em seu peito. Senti calafrios e comecei a suar , não olhei para trás porque queria me certificar que a figura de Leonor estava na imagem, triste e saudosa, observando a cena. 

Voltei para cama e apaguei a luz. Não consegui dormir pois todas as imagens de um passado esquecido voltavam à minha mente.

O meu amor e desejo por minha jovem noiva, Leonor  , a traição vista naquele restaurante onde ela conversava animada e sedutora com outro homem. A fúria e o ciúme  que me fez me vingar. 

Eu partiria, como marujo, numa viagem em alto mar e fui encubado de de buscar a roupa do Almirante. Ainda passei em casa, já era noite, só partiremos ao amanhecer e vesti a farda já com os meus planos em mente. Fui ao bar onde o sujeito  estava, aquele que acabou com meus sonhos de felicidade ao lado da mulher amada  e o convidei para uma bebida, a esta altura já não tinha notícias de Leonor pois terminamos o noivado.Eu o embreguei .  O ódio prevaleceu e arrastei aquele homem para as docas e entre caixas e sacolas de lixo, deixei seu corpo caído com uma facada certeira em seu coração. E senti, num último suspiro de vida, suas mãos agarrarem a farda do Almirante. 

Embarquei logo cedo numa viagem fatídica em que um surto de gripe levou a vida de muitos homens, inclusive do Almirante, que nem sequer se deu conta que faltava uma divisa em sua farda. 

Não dormi aquela noite. O vento que vinha da janela sussurrava o nome de Leonor. Nunca mais soube de seu paradeiro. Desconfiava que teria morrido da gripe que assolava todo o estado ou se perderia pelo mundo. 

Na manhã seguinte Agatha foi trabalhar tristonha e antes de voltar ao antiquário olhei novamente ao espelho. E me vi sentado num café lendo um jornal. Uma crônica sobre o indecifrável crime do Almirante. Ninguém conseguiu desvendar o crime pois o possível assassino jazia no fundo do mar com a sua farda delatora, muito se falou da divisa encontrada na mão do morto. 

Voltei à cidade para levar o espelho .E quando larguei  o no fundo da loja, senti meu pé esbarrando em algo no chão. Abaixei-me e nas minhas mãos,  envelhecida e esfarrapada,   estava a divisa do Almirante. Caiu de algum balcão? Mostraria ao vendedor ? Enfiei rapidamente no bolso, apavorado e sai para a rua apressado. Entrando no sebo para pegar meu exemplar do livro O retrato de Dorian Gray e voltar para casa aliviado. 

Fim

 

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 29/04/2024
Código do texto: T8052163
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