Inexistência invisível
São 4 horas da manhã. Me levanto, chuto a mesma quina da cama com o mesmo dedo, com o mesmo pé. Vou ao banheiro e olho no espelho, seria um fantasma ou a sombra do meu passado, faço a mesma indagação. Retorno para cama, desligo o despertador. Não sei o porquê de usar um despertador, não me lembro a última vez que ele soou ou se ele sequer soou algum dia. Talvez esteja quebrado, funcionando? Não sei, e continuará nesta incógnita pois hoje ele não soará.
Mais uma noite em que meu corpo descansa e minha mente vagueia os confins do abismo mental que chamam de “consciência”, outros de espírito ou até mesmo alma. Não sei, devo ter me esquecido se tenho algum destes, nem sei se algum dia eu cheguei a tê-los. Esquecer faz parte da minha vida, é meu passado, meu presente e meu futuro. Como é um futuro esquecido? Oras, o mesmo que seu passado e presente: inexistente ou invisível.
Porém algo me toca, seria inexistente e invisível uma definição correta para a mesma coisa? Não seriam essas, palavras que embora tenham similaridades, uma oposição? René Descartes diria “Penso, logo existo”, e neste sentido minha existência estaria comprovada, afinal estou relatando aqui neste exato momento a complexidade do meu ser. Porém, uma existência invisível poderia ser considerada “existente”?
Essas dúvidas sempre permearam meu coração e mente de maneira simbiótica, indagações que não vivem sem a outra mesmo que sejam forças opostas.
Me arrumo para mais um dia de trabalho. Como o mesmo pão, com a mesma margarina, com o mesmo café e digo a mesma frase “amargo como minha vida”. Ainda consigo rir disso por algum motivo. Pego minhas coisas e parto para mais um dia da minha existência invisível.
Para entender ao que me refiro, tenho que me voltar ao passado. Jogar luz sobre questões da minha vida, sobre minhas experiências, conquistas, tristezas, alegrias e esquecimento.
Sempre fui uma criança tímida, não tinha amigos nem colegas. Podiam me chamar de estranho, quieto ou até chato. Mas essa era a realidade. Cresci brincando fortemente com representações exatamente por isso, na vida eu não tinha ninguém para conversar ou brincar. O momento que eu falava algo, eu era rapidamente esquecido. Em minhas representações, minha fuga da realidade no jogo chamado “vida”, o oposto ocorria. Eu tinha tudo o que eu precisava e queria como amigos, poder, reconhecimento e o mais importante: eu existia. Não havia algo mais gratificante do que me sentir vivo ali naquele momento, porém eram apenas isso... momentos.
Toda a minha vida escolar se foi dessa forma, eu estava ali, mas não como pessoa e sim como “algo”. Uma parede, um objeto, um obstáculo. Em minhas tentativas fúteis de me aproximar de pessoas eu sempre era rejeitado. No “jogo do amor”, minha dinâmica não condizia com as regras em que os outros jogavam, pois nunca fui permitido ou aceito. Cheguei a me apelidar de “segundo plano”, já que minha existência só era confirmada quando a de alguém era rejeitada. Mesmo assim, com o passar do tempo até mesmo o segundo plano acabou nessa época. Até a única atenção, embora pejorativa e perversa como o bullying, negou minha existência. E assim meus anos escolares se foram e ingresso em minha vida adulta.
Procurei um curso que talvez trouxesse alguma satisfação para mim, queria cursar a faculdade porque talvez eu “seria alguém” enfim. Procurei diversas atividades para eu me desenvolver, alguém iria me notar sim! Eu venceria o meu destino cruel, este ciclo inacabável de esquecimento e desimportância. Eu estava enganado.
Nos esportes, eu encontrei pessoas sim, elas me cumprimentavam e eu achei que ali seria o fim do meu destino. Mas sou desde a minha conceção à vida, um observador nato. Talvez o fato de ser invisível tenha aumentado minha percepção e aguçado meus “poderes” de observação, pois muitas coisas eram claras e evidentes a meu ver. A primeira coisa que notei em poucos dias foi como eu não fazia parte daquele local, eu estava ali “por estar” já que era um local público, não havia nenhuma regra explícita de que alguém seria proibido de entrar. Mas a diferença de como as pessoas eram vistas no local e eu, eram como noite e dia, verão e inverno, opostos naturais que não se atraem e sim se afastam. Eu era apenas mais uma peça no jogo, uma parede sozinha que não sustenta nada a não ser ela mesma. Desisti.
Nos estudos tive a mesma esperança. Enfim pessoas que falam comigo! Trabalharemos juntos em muitas coisas e assim desenvolverei meu ser e transformarei minha existência fantasmagórica em REAL, foi minha indagação. Indubitavelmente, eu estava errado. Todo meu empenho foi desmotivado pelo fato de que ainda assim, eu não era nada. Apenas um “botão de ajuda”. Minha pessoa só era exaltada em momentos de necessidade, assim que eu os ajudava, eu voltava ao meu esquecimento habitual. Além disso, nesta época eu achei que tinha encontrado o que as pessoas se referem como “amor”. Sim, uma pessoa se relacionando com um fantasma! Como seria isso possível? Será que eu não era invisível como achei? E de fato, meu coração estava enganado novamente. O famoso “segundo plano” estava de volta. Esta pessoa gostava de alguém que não gostava dela, mas havia uma pessoa que tinha interesse nela, neste caso eu. Assim foi meu relacionamento, e que se transformou no mesmo de toda minha história até o momento: Em momentos de necessidade, minha presença era exaltada. Assim passados, retornava ao abismo do esquecimento.
É deveras cômico como um observador consegue enxergar tudo, menos sua própria vida. Ou apenas é meu coração tentando me trazer esperanças de um dia eu satisfazer minha necessidade de ir para a luz, sair da escuridão do abandono e banhar-me em graça. Inundar-me em amizade, beleza, companheirismo e amor. Mas mesmo com esta esperança, meu consciente cérebro observador tentava me trazer para a realidade, e como eu deveria ter lhe dado os seus devidos créditos.
Até hoje, foi esse olhar racional que me poupou de muitas coisas, ou ao menos tentou me proteger de diversas tristezas. Já meu coração não mediu esforços para que o oposto acontecesse. “Acredite em todos, ame a todos” ele suplicava em minha alma e assim o fiz, e não me surpreendi quando este havia me enganado. Não é surpresa também que meu relacionamento não deu certo. Porém, uma coisa deveras diferente aconteceu neste momento. Minha observação parece ter melhorado ainda mais, tanto de forma externa como de outra que eu não havia cogitado em desenvolver, a observação interna.
Ao ver certos padrões comportamentais, eu percebi que haviam várias “armadilhas” da vida que me levariam para o mesmo caminho, segundo plano e esquecimento eventual. O fato de eu ir atrás de todas as pessoas me cegou para algo muito mais essencial que eu havia perdido. Algo que eu só tinha em minha infância, nas minhas brincadeiras de representação onde eu era o protagonista.
Eu indagava incrédulo, “Por que sou tão invisível e inexistente?”. A rejeição já era algo costumeiro para mim, porém algo mudou. Eu na verdade não estava sozinho.
Ao me lembrar da infância, embora eu sofresse por ser invisível ao mesmo modo, eu ainda assim tinha alguém comigo: eu mesmo. Não importasse qual o devaneio, qual o ocorrido, qual a tragédia ou discórdia, eu estava lá para mim mesmo. Nos momentos de solidão onde um abraço mudaria minha vida, ninguém estava lá a não ser eu mesmo. A minha rejeição do EU foi o que me tornou “forte” para a vida, porém eu rejeitei aquilo que sempre me apoiou e me acompanhou. Minhas brincadeiras de cavaleiros derrotando dragões e monstros com amigos imaginários, foram o que me fizeram vivos. Mas esses amigos não eram o foco de minhas aventuras e sim eu mesmo.
Nenhuma reciprocidade será maior do que o amor próprio, essa é a conclusão que cheguei em minhas observações. Você não vai trair a si próprio, não vai se enganar, não vai se esquecer nem ignorar. Cada pessoa vive em seu próprio mundo, dentro deste “eu”. Após essa descoberta eu finalmente compreendi o porquê de eu ter vivido uma vida invisível, eu queria viver em outro mundo negando a existência do meu mundo, do meu “eu”. Não era e nunca foi uma questão de buscar ou encontrar uma resposta no mundo afora. A existência não está por aí a ser descoberta, não. Ela é tecida, redigida e alimentada por nossa consciência, nosso espírito, nossa alma. Embora a interação externa nos faça ser quem somos para a sociedade segundo Vygotsky, ele ainda afirma que nossa cultura interior também nos faz ser o que somos. Se negarmos essa cultura interior nos transformamos em que, se não meras ilustrações copiosas de um ser inanimado com semelhanças humanóides.
Um ser humano não é apenas biologia, ciência ou teologia. Não há formas filosóficas ou até teocêntricas da vida que não tenham surgido do mesmo lugar, do nosso “eu”. Um homem ou mulher sem este conceito, não é nada mais que um retrocesso da evolução ou até mesmo um estado de morte lírico da existência do mesmo.
Portanto, a resposta à minha pergunta anterior sobre inexistência e invisibilidade é simples: eu não me importo, pois eu encontrei o meu mundo e nele eu existo.