Perdido na multidão: Último ato.
Durante toda a minha existência, fui protagonista da vida que me rodeava, até o dia em que me perdi na multidão. Em meio aos solavancos e à correria, dezenas de milhares de pessoas disputavam o papel principal na peça da tragédia iminente. Ouviam-se disparos de uma arma de fogo, gritos, gemidos e crianças chorando. Pessoas caindo no chão e sendo pisoteadas como meros figurantes, cuja desgraça não passava de um artifício do roteiro para dar impacto à história. Eu também comecei a correr, não sabia exatamente o porquê nem para onde, mas para que eu não perdesse o protagonismo, precisava me sobressair e fazer do meu ponto de vista o foco principal do diretor. Enquanto eu procurava abrigo nos estabelecimentos às margens da avenida, a multidão seguia na mesma direção. Todos disputavam a relevância para o desfecho do enredo. Muitos falharam, caindo e ficando pelo caminho. Mais personagens secundários, mais elementos de narrativa, servindo para compor o cenário geral do desespero. Consegui me esconder em uma barraca de revistas, mas ainda ouvia os disparos, cada vez mais próximos. A multidão começou a se dissipar, cada personagem assumindo seu lugar. Qual era o meu? Ainda não havia sido revelado. Decidi então me mover, precisava sair dali. Mas quando dei um passo para além do espaço da barraca de revistas, senti uma pressão no peito, um impacto, como um pontapé no coração. A falta de ar tomou minha consciência e eu caí, constatando: uma ave bala voou ao meu encontro. Seria eu um figurante? Olhei para o lado, deitada no chão ao meu lado estava uma mulher, mais uma que o diretor sacrificou. Estava claro agora, eu não ficaria até o final para receber os aplausos. Eu era só mais um na multidão.