Mentoria de contos.

 

 

O novo menestrel 

 

 

Ivan desceu do ônibus, com o violão nas costas, e logo acendeu um cigarro. A noite estava muito fria e não via a hora de entrar no bar.

Ele caminhava lentamente, lembrando que não tinha comido nada durante o dia todo, trancado na kitnet em que morava tentando compor uma canção, sem sucesso. Mesmo com a barriga vazia queria abrir uma garrafa de cerveja e relaxar. Aquela era noite de pop rock anos 80 então seria fácil tocar até a madrugada e com sorte , Celina que trabalhava como garçonete, iria lhe oferecer algo para comer. Ainda ficou parado na entrada do bar esperando o cigarro apagar.

Entrou, tomou sua cerveja e subiu ao palco para passar o som. O bar ainda estava vazio. Mas estava bem acolhedor. Era um lugar bem frequentado e sabia que logo sentiria calor. 

Lá pelas 22 h começou a tocar e a plateia fazia pedidos que ele sempre retribuía com um sorriso no rosto. O cabelo escuro precisando de um corte, a barba por fazer e as duas contas azuis que eram seus olhos levantava suspiros de muitas moças que ouviam as canções. 

Cecília como de costume, num intervalo trouxe pastéis de carne para ele comer. Foi beliscando aos poucos até não ter mais nenhum no prato. Era o suficiente para aquele dia. 

A noite transcorreu animada com muitos aplausos e como sempre Ivam excedia na bebida. 

Quando, na madrugada, saiu para a noite fria lá fora, acendeu seu último cigarro e resolveu voltar a pé para casa. Estava com uma ideia na cabeça e pretendia compor até o amanhecer. 

Começou a cair uma chuva fininha e insistente e ele apertou o passo. Mas para sua surpresa, no meio  de umas caixas de papelão junto a porta de uma loja, ouviu um gemido. Um choramingo de quem quer soltar um latido. E logo se deparou com um cachorro, não era filhote, mas de pequeno porte, todo molhado, entre os papelotes. Abaixou-se e chamou por ele, até mesmo para ver se havia outros, porém ele estava sozinho. Um olhar de medo e resignação.  Com certeza teria sido abandonado. E quando ele resistiu aos chamados, esfregou as patinhas nos joelhos de Ivam. 

Não tinha como evitar, o pegou no colo e carregou ele consigo. 

Em casa descobriu que era uma fêmea e a aqueceu com uma toalha. Só tinha uma maçã na geladeira e picou para ela comer, estava esfomeada e dormiram juntos no colchão jogado no chão, embaixo da manta que os aquecia, ao som da chuva que aumentava lá fora.

Acordou tarde com os latidos da cachorrinha e resolveu chama-la de Cacau por ser marrom. Um chocolate quente iria bem naquela hora mas não tinha nada o que comer. Mas estava com dinheiro, deixou ela no quarto e foi para a rua. Um tímido sol teimava aparecer na tarde fria. Verificou o celular e tinha chamadas de sua mãe e de Joana. As duas eram idênticas no assunto. Sua mãe deixou uma mensagem lembrando do aniversário da avó e Joana, sua ex mulher, diziam numa mensagem de áudio

- Vagabundo, não vai esquecer o aniversário de sua avó, é  ela que paga seu aluguel.

Para mãe respondeu que não tinha esquecido. Mentiu. Para Joana deu um sonoro 

- Vai tomar no cu - gritando no áudio.

Foi no botequim da esquina e tomou uma média com pão na chapa. Entrou no mercado comprou pão, salsicha,  cigarros, ração e cerveja . Lá se fora o dinheiro da noite passada. Só tinha para a passagem para a casa de seus pais.

Seria mais uma noite fria no bar mas a companhia de Cacau o animou bastante. Era muito brincalhona e carinhosa. E esfomeada. Além da ração comeu duas salsichas.

Ivam deixou ela no quarto e foi trabalhar.

Porém está noite seria diferente. Era a noite do sertanejo e o pessoal excedia muito na bebida e eram muito passionais. E sempre tinha brigas.

Quando a bagunça começou não teve limites e em pouco tempo o bar estava todo depredado e a polícia acionada.

Ivan não sabia da onde viera o soco na cara que recebeu mas foi nocauteado.

Acordou com Cecília colocando gelo sobre seu olho.

- Vai ficar bem roxo, rapaz .

Olhado por um dos paramedicos foi logo liberado,  ainda ouvindo do dono do bar dando sua sentença .

- Tudo acabado, rapaz, você agora não tem mais emprego.

Tudo muito rápido, Ivan saiu pela rua caminhando para casa meio norteado e sem saber do futuro.A cabeça doia demais e nem chegou a acender um cigarro. 

Em casa foi recebido por Cacau que abanava o rabinho feliz. Só se jogou no colchão para dormir. A pequenina queria brincar mas ele estava acabado. E precisava de força para o aniversário da avó no dia seguinte.

Ainda tinha  salsicha e ração para alimentar a pequena. Ainda dedilhou alguns arcodes no violão. Antes de tomar a rua com aquela  chuvinha fina que estava sendo costumal. 

Já na casa dos pais sentiu aquela pontada de desconforto inerente ao ambiente. A mãe o recebeu acolhedora e avó com um abraço confortado. As duas muito preocupadas com o olho roxo. Mas era no contato com o pai que toda realidade vinha a tona.

- Andou brigando? E que camisa é  esta, parece esfarrapada? Vc não vai melhorar nunca!

- Teve uma briga no bar ontem. Fui despedido.

- Despedido de que ? Aquilo era um emprego ? Você teve todas as chances de ser bem sucedido e largou tudo por aquele violão. 

- Eu vivo da minha música

- Quem vive de música são os loucos.

Nuca iriam se entender. Se Ivan aceitasse a vida luxuosa dos pais, o emprego perfeito que o pai lhe ofereceu, tudo seria diferente. 

Depois silenciaram-se e quase não trocavam um olhar. 

A casa perfeita, a festa deslumbrante não lhe dizia nada. Não fora talhado para aquilo.

Mas o peso de ser filho unico causava muita frustração na família.

Até que não foi tão ruim , o almoço bem elaborado e um bolo delicioso. Ainda pediu a avó algo para levar para Cacau. E ante de sair a mãe colocou em sua carteira algum dinheiro e avó já tinha depositado o aluguel em sua conta. Não fosse pela presença de Joana teria suportado bem aquele dia.

- Está sem emprego agora? Recebeu a verba da mamãe e da vovó? Você não vai mudar nunca? Nunca vai crescer ? 

Não entendia a presença dela ainda com a sua família e já deixara a muito tempo atrás de começar uma briga com ela. Ainda bem que não tiveram filhos. 

Passou no mercado antes de voltar para casa. Pensava, diferente de antes, que tinha Cacau para alimentar. Comprou até menos cervejas. 

Em casa não estava mais sozinho, tinha sua companheira canina que o deixava feliz. 

Esperou uns dois ou três dias para sair de casa. A chuva,  bastante cigarro e comida e a companhia agradável de Cacau e seu violão. 

Sua avó  não viveria para sempre e ele precisava de mais dinheiro. 

Pegou o violão e dedilhou alguns acordes animados cantando uma canção infantil para Cacau. 

A inspiração que desejava não vinha. 

Tinha comprado uma coleira para pequena e quando viu que a chuva deu uma trégua pegou seu banquinho dobrável, amarrou Cacau na coleira e partiu para a praça  do metrô. 

Pessoas iam e viam e ele retirou o violão da capa, que depositou no chão e sentado, começou a cantar. Cantava para si, músicas antigas de MPB . Um pouco menos tímido aumentou a voz começando a despertar atenção dos transeuntes. Alguns paravam, outros filmavam-no ao celular, jogavam moedas e notas na capa do violão. 

Quando tinha muita gente ficava apenas tocando uma música de fundo e declamava um poema. Algum que sabia de cor, de Floberla ou Neruda. Outras vezes declamava um poema de Manoel de Barros com se contasse uma história. E sempre era aplaudido.

Na rua, encontrou seu público, deixou vir do coração seus maiores anseios de músico. Cacau soltava alguns latidos quando ouvia palmas o que era agradável as pessoas que ali paravam por encanto. 

Aquilo estava se tornando um hábito. Certa vez sua mãe e sua avó vieram escutar o menestrel do metrô.  Foi chamado assim por um senhor idoso que ao som de Carinhoso chegou às lágrimas. 

A música ideal que ele procurava ainda não tinha chegado mas prosseguia naquilo que tanto amava fazer. 

Nos dias de chuva tinha comida suficiente para Cacau e sozinho , naquele quarto, cantava o amor é um lamento...

 

Fim.

 

 

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 20/04/2024
Código do texto: T8045707
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