Despedida - Contos Insólitos
Deitou-se mais uma vez ao lado do marido calçando os sapatos velhos, de sola gasta e cadarços puídos. O marido no início aceitara essa esquisitice, porque muito a amava. Mas com o passar dos anos, aqueles pés sempre trancados dentro de sapatos rotos começaram a incomodá-lo. "Tira os sapatos, meu bem. É estranho fazer amor com eles dividindo a nossa cama". "Mas eu já te expliquei tudo muito bem. Se eu os tiro, as almas que me acompanham me levarão embora. Os sapatos são minha âncora nessa mundo". "Bobagem! Você é que pôs isso na cabeça, estou começando a achar essa sua mania insuportável!". Ela se calava. Ia passar o café, fazer o bolo preferido dele, perfumar-se para ver se ele esquecia. Mas ele agora só fazia lembrar. Não era mais só à noite, era o dia inteiro. Já não conversavam, o interminável pedido para tirar os sapatos sempre entre eles. Numa noite, brigaram feio. Ela chorou, chorou, até o sono vir roubar sua tristeza. Ele não aguentou mais. Desatou os cadarços bem devagarzinho. Afrouxou as linguetas. E com muito cuidado para não despertá-la, foi removendo os sapatos como se segurasse uma criança pequena nas mãos. Não reparou nos fantasmas vestidos de nuvens a postos às suas costas. E assim que os pés ficaram livres, viu a mulher alçar voo, ainda de olhos fechados, profundamente adormecida, arrastada nos braços diáfanos daqueles seres que subiam, subiam cada vez mais alto, até desaparecerem no escuro profundo do céu.