Das Graças - BVIW
"Mas o que é ISSO?" disse a velha, que vinha arrastando o dedo encarquilhado pela superfície polida do aparador. Levantou- o na altura do rosto de Das Graças, que estava com ela há quase quinze anos. "Como eu consigo suportar?!" pensou ela. Teve vontade de morder e arrancar aquele dedo que repetia o mesmo gesto todos os dias, não importava o quanto se empenhasse em extirpar cada mínimo átomo de pó dos móveis. O serviço nunca estava a contento. Era o chão que ficara manchado, o arroz mal cozido e salgado, a roupa, encardida. Mas aquele dedo procurando uma poeira que não havia era o que lhe dava ganas assassinas. Planejou tudo minuciosamente. Passou três meses procurando um novo emprego até achar um, perto de casa e até mais bem remunerado. Tivera sorte. Chegou como se nada houvesse, para o que só ela sabia ser o seu último dia sob o jugo da bruxa. Aspirou toda a casa. Retirou o saquinho de pó do aparelho e guardou-o cuidadosamente. Passou pano, espanou, esfregou a flanela. Mas não deu outra. A velha veio com seu dedo torto, arrastando-o pelo aparador. E logo soltou a frase: "Mas o que é ISSO?" Quando parou o dedo na cara de Das Graças, ela sacou todo o conteúdo que recolhera do aspirador e gritando a plenos pulmões "É ISSO! É ISSO! É ISSO!" foi sacudindo o pó sobre os móveis, a cara da velha e seu dedo ainda erguido, com olhos vidrados de desvairada satisfação.
Tema: Poeira na ponta dos dedos