O Espelho de Crochê

Minha mãe, após banhar as plantas, pousa o regador no chão e se ajoelha no meio do nosso humilde jardim, em frente a imagem de nossa senhora de Fátima, que segundo ela, abençoa nossa moradia.

A tal Fátima é branca e aposto que por baixo daquele véu existe um cabelo liso e loiro. A escultura é um pedaço de gesso, com as palmas das mãos grudadas simulando fé em cima de uma pedra. Aguardo em silencio até que a fantasia da minha mãe acabe. E é esse seu sorriso no fim do evento que me faz respeitar toda aquela baboseira.

O sorriso acolhedor da minha mãe, que se volta para mim, é tão reconfortante que me faz esquecer que ela está ajoelhada para uma mulher branca. contudo, logo após esse breve instante de esquecimento, questiono o porquê de se ajoelhar para aquilo, então ela se ajoelha também para mim, coloca a palma quente de sua mão no meu peito, e diz que cor e carne são moradias passageiras para o que há de sagrado dentro de nós.

Ela se levanta mantendo o sorriso calmo e me apressa para o banho, pois sou do turno vespertino e já é quase hora de ir para escola.

No chuveiro ensaboo meu corpo, o aroma do sabonete perde minha atenção para o delicioso cheiro da comida vindo da cozinha.

Depois, almoço enquanto vejo a minha merendeira rosa em forma de coração sendo preenchida com bolinhos de bacalhau fumegantes feitos por minha mãe. De volta ao banheiro, escovo os dentes evitando olhar para o espelho, então ouço a propaganda que passa na TV da sala. Fico eufórica com o lançamento de Sarah Veterinária. Parece que foi ontem que lançaram Sarah Empresária e já estão lançando outra nova?

Corro para mamãe, e ela já prevendo minha intenção, diz que não pode comprar a boneca no momento, mas promete que quando as coisas melhorarem comprará.

Meu peito queima com o choro reprimido, mas assim que ela carinhosamente me entrega a merendeira e encaixa a mochila nas minhas costas, meu coração acalma, mesmo ainda triste.

Então eu vou limpando as pálpebras úmidas. Assim que atravesso o jardim e encontro a rua, olho para trás em despedida. Mamãe me observa da porta, daí entendo meu egoísmo ao vê-la em volta da parede sem reboco da nossa casa.

Caminho na empoeirada estrada de barro que corta nossa comunidade localizada no meio do nada. Todos os poucos rostos que esbarro no caminho ensolarado são familiares, até mesmo o dos dois homens de macacão laranja que mais um dia perfuram o solo, esses não são daqui, são da cidade, perfuram buscando uma tubulação que não entendi direito o que é.

Minha amiga já está aguardando de baixo da arvore seca a qual entendemos como ponto de ônibus. Clara está no quinto ano assim como eu. Apesar de sermos de salas diferentes, construímos um laço forte.

Todo dia que chego no ponto ela está penteando o cabelo de sua boneca com uma escova de dente. A Sarah dela é muito antiga, foi a primeira lançada, nem profissão a boneca tinha. Era só Sarah.

Ou como os meninos a apelidaram na escola: Sarah desempregada, ou até Sarah Vagabunda.

Apesar da antiguidade, na comunidade Clara é a única que tem uma Sarah, e essa versão da boneca, aqui nesse fim de mundo, ainda tem certa magia.

O ônibus amarelo surge levantando o poeirão. Ele para, subo a escadinha e quando atravesso o corredor de poltronas, uma menina repara o pequeno rasgado na minha mochila e dar uma risadinha maldosa. Sento no lado de Clara, mas a deixo próximo a janela como sinal de proteção.

O ônibus começa a andar, e nisso percebo, que Clara não usa mais a boneca pendurada na mochila. E sei que estamos chegando na cidade, quando Clara coloca a boneca escondida dentro da bolsa.

Descemos na calçada lateral da escola. A rua é movimentada, muitas e variadas pessoas apressadas passam pra lá e pra cá. Quando me aproximo á frente da escola, as variadas pessoas dali se afunilam na porta da entrada, usando as mesmas roupas brancas com detalhes verdes.

Algumas meninas, normalmente as brancas, ostentam diversas versões de Sarah penduradas nas mochilas. Tem Sarah Médica, Sarah Empresária, Sarah Lutadora, vi até a Sarah Astronauta que eu nem sabia que existia.

Aline, a riquinha da escola está rodeada de meninas. De longe consigo ver, elas surpresas com o pequeno cachorrinho que veio junto com sua Sarah Veterinária. A boneca lançou hoje e ela já tem.

Aline é loira, cabelos lisos e tem olhos azuis. Além disso ela é rica assim como a boneca Sarah. Parece até a versão em carne e osso da própria boneca...

Assim é fácil ser adorada...

Na sala de aula, sento nos fundos, onde tenho impressão que é mais escuro, e Aline está lá na frente, próxima ao professor, onde parece mais iluminado. O professor se levanta para revelar as notas da prova de ontem, Aline tira nove e meio, mais uma vez beirando o dez. Ela abraça e beija a Sarah Veterinária de forma invejável, e depois faz o mesmo com o cachorro Tuxo, que também balança preso à sua mochila.

Nervosa, rabisco o caderno buscando fuga do momento, e quando o professor grita "Rebeca", sou puxada de volta para o aqui e agora. Pela primeira vez, sou grata pela tonalidade da minha pele, pois o canto da sala é mais escuro, e não quero ser vista assim que ele revelar minha nota.

Tiro três e meio.

Com essa nova vergonha anunciada, espero ansiosa que o sinal toque. E assim que o faz, passo pelo corredor barulhento e sento na escada que vai para o terraço. Há uma grade impedindo a subida atrás de mim, ninguém passa ali, é proibido o acesso ao terraço.

Sozinha, reparo o quão infernal é minha mente. Minha pele é um gatilho que me faz lembrar a moça do supermercado. Ela estava na minha frente na fila do caixa, o bebê dela sorriu para mim em cima do balcão, quando estendi a mão para brincar com ele, a mãe olhou feio para mim e o tirou dali, fiquei perdida, mas depois entendi tudo com o "filho, não se junte com pessoas desse tom" que saiu da boca dela, mesmo com a criança continuando a sorrir pra mim agora envolto aos braços da mãe.

Esse corpo em que nasci é uma maldição. Se eu pudesse mudava tudo. Mas como eu queria que meu corpo fosse? E com essa duvida saio da questão pois sou atraída por algo diante de mim.

Uma Sarah Veterinária balança como um pêndulo, em uma mochila à minha frente. Aline está de braços cruzados diante de mim, e curiosamente sem suas bajuladoras.

Ela me cumprimenta, diz que sabe qual é meu sonho. A loira agacha, abre sua bolsa e tira sua boneca anterior, a Sarah Empresária, e me entrega. Diz ela que essa agora é minha. Meu rosto queima em um conflito de alegria e raiva.

Pressiono a boneca com força e jogo na riquinha. Ela se esquiva surpresa e Sarah cai no chão, nos pés de Clara que acabou de chegar, provavelmente preocupada por eu não estar com ela no recreio como de costume.

Desço as escadas abandonando aquele cenário. Dentro de mim a coisa ferve. Atravesso os corredores com gritos de crianças que correm e riem, vejo o portão da escola aberto sem vigia, aproveito do vacilo do porteiro e fujo dali.

O caos de carros e pessoas transitando freneticamente é só um ruído sem sentido comparado a batalha dentro de mim.

Parte de mim queria ter pego a boneca, mas a que não quis venceu. Desde que mamãe estendeu a mão para mim no orfanato, nunca a vi pegar esmola, me criou com garra, e preciso honra-la.

Finalmente me atento ao ambiente onde vir parar após a hipnose da raiva. Já é o terceiro homem triste de barba bagunçada que avisto carregando um carrinho com latas e litros descartáveis. Estou próxima a reciclagem.

Certeza que nenhum daqueles homens tiveram um boneco quando criança. É provável que já trabalhavam na minha idade. Não tiveram momento de alegria como Aline tem com Sarah.

Então a raiva me abandona e sobra a incomodante culpa. Pois agora, com mais clareza, revisito alguns momentos. O dia que os meninos riram do meu cabelo de "pico" no recreio, me lembro que depois do meu vergonhoso choro em público, eles pararam de implicar comigo assim que se depararam com Aline os olhando nos olhos.

Aline é poderosa, é adorada.

Pensando bem, ela nunca me tratou mau. Me deu água quando machuquei o joelho na escola, tentou me animar dizendo que cabelo crespo é lindo, no dia achei que era deboche. Talvez o mau esteja em mim. Me sentencio como uma menina doente, e ando em direção ao local do lado da reciclagem: O lixão com auréola de urubus.

São varias montanhas de lixos dentro de um enorme espaço emparedado a céu aberto. Subo o maior monte que encontro sem medo de qualquer perigo escondido nos entulhos, e no topo esta um carrinho de mão sem roda, sento nele sem me importar com as ferrugens.

Estendo meus braços na direção das aves amaldiçoadas. Minha cor de pele se alinha com a de suas penas, e mais uma vez o universo me comunica quem sou.

Dali de cima, sei que horas são no momento que vejo Clara passando pela rua, ela não me vê, pois esta alegre, e o motivo de sua alegria me amarga. Aquilo amarrado com cadarço na mochila dela é a Sarah Empresária. Ela aceitou a esmola de Aline.

Por que isso me incomoda? Por que aquela boneca loira de cabelo liso segurando uma maleta, balançando na mochila dela me incomoda?

Deito no meio dos lixos me identificando como um deles. Avisto duas aves descendo á metros de mim e as escuto bicando algo. Levanto o pescoço para ver melhor. Parece um braço de bebê, um braço de uma criança negra saindo do lixo. A cada bicada o bracinho treme.

Levanto e corro me equilibrando nos entulhos, abanando as mãos espantando os carniceiros.

Um cheiro de carniça preenche minhas narinas ali perto do bracinho no meio de varias sacolas gordas. Seguro apreensiva a mão da criança, mas antes de puxa-la, estranho sua maciez. E entendo o que é.

Ao puxa-lo, a carniça de alguma sacola que grudara nele se descola aos poucos. Então me deparo com uma boneca feita de linha preta de crochê.

Ela tem apenas a metade dos cabelos, que ainda por cima é crespo, a outra metade está careca, alguma criança a maltratou. O vestido rosa esta rasgado na parte de baixo junto ao forro. Os olhos são feitos de botões e um deles está quase soltando.

A boneca preta só continua a sorrir porque não tem consciência de si mesma, e isso me dá pena.

Nos céus, os urubus continuam sua ciranda maligna, e para defende-la desses agourentos, coloco a coitada na minha mochila. Vou embora fingindo que nem eu, nem as pessoas que cruzo na estrada estão sentindo o cheiro de carniça impregnado à minha mochila.

Quando céu escurece, já imagino a bronca que tomarei da mamãe por ter perdido o ônibus de volta. Sempre fui obediente, nunca cheguei tarde. Avisto minha comunidade depois de quarenta minutos de caminhada com o peso da irresponsabilidade nas costas.

Ninguém mais está na rua, nem mesmo os homens de macacão que costumam trabalhar até tarde.

A primeira coisa que vejo através da grade do portão de casa, é mamãe ajoelhada em frente a Nossa Senhora de Fatima. Mamãe, ao escutar o som do trinco, beija a santa e corre na minha direção.

Os gritos e os tapas que ela me daria, se desfazem da minha imaginação na hora que ela me abraça agradecendo a Deus. Ela move meus braços vendo se tenho alguma ferida, me abraça de novo e agradece a Santa de novo.

Sinto vontade de falar que amo minha mãe, mas por algum motivo não falo. E entre seus braços ela me olha como se soubesse disso e respeita o silencio.

A única ordem que ela me dá é, no bom humor, que eu vá tomar banho pois estou cheirando mal. Eu rio agradecida dela não perguntar o que ocorreu, mesmo sabendo que investigará mais tarde.

No banheiro, tiro a boneca de crochê da mochila e lavo ela no chuveiro com cuidado para que o outro olhinho não saia. Passo shampoo nela e condicionador escondido da mamãe. Ela fica engraçada cheia de espuma, depois de rir bastante, enxaguo ela e a coloco na pia para eu poder tomar meu banho agora.

Depois, a levo ao quintal, levanto a boneca na direção do varal e fecho o pregador nas costas dela para que fique secando. Minha mãe observando aquilo, me pergunta onde consegui uma Sarah preta. Digo a ela que não é uma Sarah e mostro a ela o que é.

Mamãe arqueja os lábios, e diz que essa é mais bonita do que a Sarah, dou uma gargalhada como se recebesse cócegas.

É tarde da noite, estou na cama tentando dormir. Da janela vejo minha mãe no sereno limpando o pequeno templo de Nossa Senhora de Fátima, é sempre a ultima coisa que ela faz antes de dormir, e a primeira coisa que faz ao acordar. Terminando, ela entra, apaga a luz de fora pendurada na arvore e sobra apenas o balançar da boneca preta com o movimento do vento no varal.

Na manhã seguinte, a primeira coisa que faço é tira-la de lá. Com ela nas mãos volto a sentir pena, preciso preencher com cabelos a área careca da cabeça dela. Minha mãe aparece no quintal, surpresa por eu ter acordado mais cedo que ela. Sorri para mim e vai para o jardim limpar o templo da santa.

Pego os trocados que guardei, tenho o suficiente para comprar alguns fios lã preto no armarinho do outro lado da rua. Corto o material comprado em tamanhos iguais e preencho a área calva da boneca. Levo ela para a sala e colo o olhinho dela, e próximo a hora de ir para escola, me alegro ao ver mamãe costurando o vestidinho da minha bonequinha.

Quando ela me entrega, pergunta qual o nome dela, eu ainda não a batizei com um.

No ônibus da escola, Clara agora ostenta a Sarah Empresária amarrada na mochila. Ela senta do meu lado, mas sua expressão de alegria muda ao ver a boneca de crochê na minha mão. Ela acha que sabe como me sinto, mas não sinto o que ela acha.

A escola surge na minha frente e antes descer do ônibus faço o que Clara não faz mais: escondo minha boneca na mochila.

Não faço isso por vergonha, é como coloca-la em um casulo, é difícil explicar...

Aumenta o número meninas de cabelos alisados na escola, muitas pintaram de loiro, e a novidade é que agora, algumas estão ousando pôr lentes azuis.

Às entendo, pois esses, já foram pensamentos que visitaram minha cabeça uma vez fabricando vontades que não são minhas.

Vejo Aline no refeitório rodeada de bajuladoras, ela exibe a cartilha da Sarah que lançou, onde ali mostra a marca do shampoo que Sarah usa, a marca de roupa, de sapato, do esmalte, até a marca da ração do cachorrinho da versão veterinária come.

As meninas se esforçam para cumprir os requisitos, querem se sentir Sarah. Como se aquilo fosse um grimório de requisitos para incorporar um Sarah dentro de si.

Mas de quem é o interesse disso?

E como uma clareza libertadora, desapego dos últimos fragmentos do desejo de ser Sarah que restam em mim, e sinto minha essência se renovar ao libertar Lilian da minha mochila. Deixo-a pendurada, à mostra.

A boneca de crochê pendula na minha mochila, com sua pele negra e cabelo crespo, assim como eu: Rebeca.

Obviamente lido com os olhares tortos dos alunos fazer isso, mas também dou atenção ao que não reparava logo no momento que esbarro em uma aluna estranha da escola. Na mochila jeans dela, oscila uma boneca de pano amarrada pelo cabelo, um de seus olhos já saiu e foi posto band-aid em cima. A boneca exala uma rebeldia interessante, assim como a dona.

Na saída, dessa vez não perco o ônibus. E nele, deixo minha mente divagar inventando uma personalidade para Lilian, e como se ela já sempre estivera lá, escuto sua voz doce e carinhosa.

Quero me dedicar mais a Lilian e por isso faço uma pequena casinha de bonecas pra ela no meu quarto. Faço com o capricho de quem entrega o coração a obra.

Lilian já me visita em alguns sonhos, onde consigo anotar as coisas animadoras que ela me fala. Suas mensagens são como gotas de água que regam que purifica quem sou.

E agora a primeira coisa que faço todo dia ao acordar, é limpar a casinha de Lilian e isso também é a ultima coisa que faço antes de dormir...

Assim como mamãe faz com a Santa lá fora....

Nessa manhã sou acordada por uma tosse forte. Estou em meio a fumaça que veio de todos os lugares. Prenso meus olhos para enxergar algo naquele calor medonho, e montando as peças da lógica, confirmo que ainda estou no meu quarto. E a voz que grita desesperada lá fora, é da mamãe.

Ela grita por mim.

A porta abre bruscamente, e os dois homens de macacões laranja entram no meu quarto. Perdida, sendo arrancada por eles dali, estico os braços em direção a casinha de boneca. O pano improvisado que colocam na minha boca e nariz abafa meus apelos para que salvem Lilian.

Sou posta do lado de fora, onde a vizinhança assiste nossa casa sendo consumida em chamas. Mamãe me abraça aos choros.

Um dos homens de macacão nos pede perdão, pois não sabia que havia um túnel de gás debaixo da nossa casa. E as lagrimas da mamãe se aliviam quando o rapaz de terno preto, cujo nunca vi antes, promete que o governa cobrirá a despesa da tragédia

Mas ninguém trará Lilian de volta. Entro em um vazio obliquo com a perspectiva de futuro sem ela.

Mamãe, percebendo meu tortuoso devaneio, pousa sua palma quente no meu peito. Ela olha nos meus olhos, e seu sorriso agora é diferente, me lembra o de Nossa Senhora de Fátima. Cuja imagem também se foi.

Ela diz que a verdadeira Lilian mora atrás das minhas pálpebras. A boneca é só uma constante lembrança do que habita no meu interior.

Pidókka
Enviado por Pidókka em 04/04/2024
Código do texto: T8035018
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