A bicicleta do escritor - Davy Almeida

Vida Nordestina

Quando os retirantes chegaram ao bairro não tinham de comer. Seu barraco

era cercado com bambus e o casebre não tinha portão. Certa ocasião

choravam com fome, um vizinho chamado Elias ouviu os lamentos e lhes

deu um saco bem grande cheio de raízes de mandioca que sua mãe

cozinhava num fogão improvisado, uma lata de tinta látex com uma grade

embaixo colocava se o carvão. Não tinham dinheiro para comprar o gás,

embora tivessem ganho um fogão a gás. Um dos filhos tinha sonho de

fazer faculdade e logo ganhou bolsa, como não tinha dinheiro nem para

comer teve de largar os estudos, na época não havia passe livre para

estudantes, apenas meia tarifa. Nem essa meia tarifa ele podia pagar e

então pulava a catraca do ônibus. Chegou a cursar um ano de faculdade.

Os empregos que tinham pagavam tão pouco que não dava para comer.

Metade de salário mínimo. Ia o chefe da família religiosamente a igreja.

Tinham ele a brutalidade dos coronéis da roça e do Brasil colonial. Era

uma família colonial. A esposa vivia exclusivamente para os filhos e

marido. Todos os seus desejos, todos os seus pensamentos, todas as ordens

que recebia, tudo o que fazia, o dinheiro de suas costuras ou de suas

faxinas nas casas das senhoras ricas do condomínio era para a família.

Era uma mulher trabalhadora. Não tinha nenhum estudo. Não sabia nem

ler e nem escrever. Obedecia aos filhos e marido. Tinha bom coração e

costurava quase gratuitamente em troca de algumas moedas. Era também

bruta com as palavras. Algo cultural. Fora criada na roça. Conheceu a

eletricidade quando tinha 25 anos de idade. Passou fome na infância, seu

pai tinha um sitio falido que nunca produzira muito. Chegavam até caçar

tatu, preá, passarinhos para comer. É uma pobreza ancestral. Herança

colonial do Brasil. É uma pobreza que passa de pai para filho. É uma

pobreza para filhos e netos. Junta-se a pobreza safadeza, a preguiça, a

loucura, a ignorância, violência e outras coisas mais.

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A MARATONA DA POBREZA

Eu tinha três modos de ir a cidade: pular catraca de ônibus, ir de bicicleta

ou ir a pé. Cansei de ira a pé para o centro de Mogi das Cruzes, Suzano e

Itaquaquecetuba. Para Mogi a pé demorava entre duas horas e duas horas e

meia. De bicicleta demorava uma hora e vinte minutos. Suzano bem mais

perto. Geralmente eu ia de bicicleta deixar curriculum. Sempre sofri muito

preconceito e ninguém queria me dar emprego. Era total exclusão social.

Voltava de baixo de chuva ou com a bicicleta quebrada, pneu furado. Te

pergunto alguém tinha pena de mim? Não quem tem pena é galinha.

Sapato estava furado de tanto caminhar. A fome era das brabas. A pobreza

contribui para a pessoa ter baixo estima e ela muda completamente seu

psicológico. Andava por todos os lugares de bicicleta e me apelidaram canela de ferro e pé de ferro.

Negando um prato de comida

O padre Luigi gostava de mim e sempre me convidava para almoçar. Ele

sabia da minha necessidade. Era um menino tímido e de cabeça baixa.

Falava baixo e pouco. Talvez o câncer o tenha deixado com um coração

mais doce. Os seres humanos ficam mais bonzinhos quando estão doentes.

A implacável e terrível natureza humana fica mais branda na doença

porque descobrimos nossa fragilidade. A obrigação deles era acolher o

menino lá. Gostavam de viajar para a Itália três ou quatro vezes por

humano. Religião é geralmente fachada para lavar dinheiro, para que os

religiosos tenham uma vida melhor e mais confortável. Todo mundo que

trabalha com religião tem dinheiro. Quem não tem dinheiro é quem

trabalha e vive de salário mínimo. Certa vez, após a missa ia almoçar, lá

tinha um falso religioso que me perguntou : “ quem te convidou para

almoçar? Você incomoda muito os padres” eu lhe disse : “ você trabalhou

para comprar a comida? Você não mora aqui e come e bebe de graça?”

A pessoa fazia conta até de um prato de comida. Se veste em trapo de

religioso, mas seu coração é perverso. Todos ali sabiam da minha situação

que ia a pé para o convento, andava cerca de 20 quilômetros. Todos

querem boa educação, viajar e comer bem. Cada um se preocupa com sua

barriga. Se a barriga está cheia está bom. A fome é sua não é minha, só

sinto minha fome, a fome dos outros não me constrange e nem me

incomoda. Igrejas movimentam trilhões de dólares por ano. Os pobres

sempre são pobres. Se você for pedir uma cesta básica em uma igreja o

pastor vai mandar você ir trabalhar. Tenho medo de quem fala de Jesus em

troca de dinheiro. Jesus disse a Judas quando ele disse que o perfume

poderia ser vendido para dar o dinheiro aos pobres : “ os pobres sempre

tende convosco” leia o evangelho de João capitulo 12: versos do 1 -8.

todos usam a imagem dos pobres para arrecadar dinheiro, mas este

dinheiro não chega nas mãos dos pobres.

Um pastor evangélico uma vez me disse: “ você é ingenuo demais para

acreditar em igreja. As pessoas são ingenuas. Eu não acredito nem em ong

e nem em igreja, é tudo para lavar dinheiro. Acreditas também na

politica?” ele continuou : “ pensas que sou idiota? Eu trabalhava em São

Paulo numa fabrica de tecidos, pegava trem e ônibus para o trabalho e

ganhava pouco. Hoje dou culto quarta e domingo e ganho três vezes mais.

Trabalhar é para idiotas. Você sabe disso, é um jovem culto e muito

estudado, não é como esses analfabetos de quem arrancamos dinheiro, meu

filho. Sua mãe te criou como princesa, por isso vive no mundo de conto de

fadas. Meu bebezinho.”

neste mundo é assim “ quem não rouba e quem não herda só tem merda”

que riqueza não é fruto de trabalho. Quem é honesto nada tem e passa por

necessidade.

Vi neste mundo muita gente boa e honesta passando fome. Os corruptos

todos ricos. Eu não sabia me fingir de bonzinho. Eu desconfiou de quem é

bonzinho. Luigi me disse certa vez que os lobos vivem na igreja e não no

jardim da igreja.

Gregório de Matos dizia: “ todos os que não furtam, muito pobres....”

daquele dia em diante, depois daquela discussão com um religioso gordo e

comilão que fazia conta da comida a qual não comprou porque era doação.

Já não ia mas nas missas. Fiquei triste. Luigi me perguntou, mas nada lhe

contei. Deus faz a justiça. Nunca fui lá acolhido. Eu não tinha aparência de

bonzinho e de religioso. Este povo vive de roupas e de aparência de

religião. Cheiram religião, mas seu coração não é para com o Deus

verdadeiro. O que manda no mundo é dinheiro. Todos os que tocam os

negócios de religião, porque é um negócio são muito bem de vida. Só lhes

é pobre o coração. As pessoas são muito ingênuas por acreditarem em

instituições, elas não acreditam em Deus e nem em si mesmas, mas

acreditam em instituições. Só Deus é bom, a sua misericórdia é para

sempre. Deus faz o bem. Como dizem: quem tem pena é galinha. Deus tem

piedade e misericórdia.

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Morando com o medo

Talvez ele o fosse ver no berço. O fato é que sempre sentiu ciúmes do

irmão. Como se ele tivesse roubado os pais dele. Depois que cresci vi suas

fotos de criança. Era uma criança medonha e assustadora. Todos dias isto,

entretanto pai e mãe são cegos. Quando jogava videogame não deixava o

irmão jogar. Tinha muito ódio do irmão. Eram como estranhos. Os

espiritas e entendidos no kardecismo diziam que foram inimigos em vida

anteriores. Logo tiveram de ter quartos diferentes. Na adolescência

apresentou problemas com o pai. passou a odiar o pai, a não querer mais

falar com o pai. O pai e mãe nunca bateram nele. O pai nunca foi

alcoólatra ou viciado. Era de tudo invejoso e tinha baixa estima e

complexo de inferioridade. Quando conseguiu o primeiro emprego achava

que aquilo não era para ele. Ele era sempre melhor que outros. Aquele

emprego poderia ser para o pai, a mãe ou irmão ou ainda qualquer outra

pessoa, mas não para ele. Fez cursos e queria ser o melhor. Não aceitava

qualquer trabalho. Nem no açougue, nem na padaria, nem no mercado,

nem no call center e nenhum outro lugar. Seu irmão mais novo o ajudou a

pagar a faculdade, infelizmente nem mesmo depois de formado foi

trabalhar. Não namorava. Ficava o dia todo dentro do quarto com cara de

enfezado. Os vizinhos tinham medo. Cara feia. Era feio por dentro e por

fora. Não pagava conta de água e luz. Ficava meia hora nos banhos.

Dormia com o ventilador ligado. Não fazia compras no mercado para

ajudar pai e mãe. Trancafiado dentro de seu quarto desde 2009.

perambulava pelo bairro como doente mental e zumbi. Sua vida se resumia

em internet, jogar videogame o dia todo e e a noite toda, jogos violentos.

Não varria uma casa ou lavava uma louça. Não fazia nada mesmo. Comer

e dormir e perturbar a família. Seu pai não falava com o débil mental há

mais de dez anos. Apenas sua mãe. Todos sofriam com isto. Eu não podia

corrigi-lo porque era agressivo. Já apanhei desse psicopata muito quando

adolescente. Ele não tinha pena do pai e da mãe. Dizia gostar da mãe, mas

nada fazia para ajudá-la. Desempregado há 15 anos, nem sequer fazia

bicos. Vivia nas costas da família. Tinha medo que ele colocasse veneno na

minha comida, as vezes quando chegava do trabalho nem jantava. Minha

segurança era o almoço. A noite eu era o ultimo a comer o resto que

sobrava. Fazia rimas e música para o pai que eram assustadoras. “ meu

para pá pá pá.... e pai vem do alto, ele é do Jeová....” dizia frases

desconexas e dava risadas assustadoras. Batia palmas e batia os pés.

Não tinha amigos. Apenas a mãe falava com ele. O problema dos loucos e

psicopatas é que pensam ser normais. Os vizinhos todos percebiam sua

demência. Já estava ele perto dos 50 anos de idade. Vez ou outra arrumava

confusão com vizinhos por causa de barulho. Sua mãe já velha é quem

muita sofria. Os doentes mentais gostam de fazer os outros sofrerem. Eles

ficam felizes com o definhar dos outros. A família passava necessidades.

Fome e pobreza. Eles eram de origem nordestina, tinham uma natureza

terrível. Eram mal educados, falastrões, iracundos e agressivos. Seu pai

tinha uma personalidade um pouco amargurada, semelhante ao Mestre

José Amaro da obra Fogo Morto de José Lins do Rego. Sua mãe vivera a

vida toda em torno dos desejos do marido e dos filhos. Dedicou se com

esmero a cuidar dos filhos. Deixava de comprar um roupa para si mesma,

um creme, um batom ou até mesmo um sorvete para dar brinquedos aos

filhos, roupas e cadernos para a escola. Se você cria seu filho como rei, ele

pode pensar que você é escravo dele. Ela sabia costurar, oficio herdado de

sua mãe. Sempre trabalhou como costureira. Ia a pé para o trabalho

enquanto dormiam até 10 horas da manhã. Ainda pegava serviços de

costura para fazer em casa. A noite ouvia-se o barulho de máquina de

costura. Fazia todos os afazeres domésticos. O marido, pai dos meninos

vivia de bicos como dizem ou trabalhos temporários. Vivia mais

desempregado do que empregado. Talvez a pobreza tivesse afetado o

cérebro daquele débil mental. Talvez fosse safadeza, sem-vergonhice,

vagabundagem e sadismo. Era medonho ver aquele homem com aquela

cara de louco e doido varrido na rua, imagina morar com ele?

Perambulando pela casa, cantando suas cantigas de hospício. Os crentes do

bairro achavam que ele talvez estava possuído, era falta de Jesus e falta de

Deus. Era caso de psiquiatria. Era caso de policia. Era caso grave. Vivia

chutando paredes e dando grunhidos esquisitos. Sua mãe achava tudo

normal, para ele o rapaz de quase cinquenta anos estava apenas brincando.

Era o sujeito amarelado e de olhos atravessados, mau encarado. Ninguém

tomava providencias. Louco a solta na sociedade.

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Davy Almeida
Enviado por Davy Almeida em 03/04/2024
Código do texto: T8033885
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