Módulo 3 da Oficina de contos - escrever um conto em primeira pessoa com algum fato que choque a personagem.
Tempo Esquecido.
Eu estava sentada em uma lanchonete devorando meu sanduíche em silêncio, não tinha almoçado até aquela hora quando percebi que uma ex-aluna estava sentada ao meu lado. Uma morena bonita e vistosa, um cabelo muito bem tratado, grávida de pelo menos 7 ou 8 meses, dentro de um conjunto azul de calça e body que delineadas seu corpo e a enorme barriga.
- Oi professora, a quanto tempo !
- Você se formou ?
- Não, abandonei. - quase sempre quando eles sumiam, era porque abandonaram o ensino médio.
Eu estava um pouco cansada e queria ir para casa, mas não era possível, ainda tinha que enfrentar o turno noturno .
- Vc está linda grávida, é uma menina ?
- Não, outro menino.
- Seu filho deve estar enorme !
- Já vai fazer 6 anos.
Eu conhecia Giovana desde que nasceu, ela morou em meu bairro. Só adulta é que foi minha aluna. Adulta? Tinha uns 20 anos no máximo. Lembro da sua primeira gravidez aos 13 anos de idade.
- É professora, este eu deixei vir. Estou bem com o pai dele. A senhora sabe ,não é, eu já fiz 8 abortos.
Sim, eu sabia disso. Lembro dela entrando na minha sala de aula com um atestado médico para justificar a falta de uma prova. Vestida num jeans super apertado e com um salto alto de bico fino.
- Não pude vir a sua prova na terça, eu fiz um aborto.
Aquilo não me afetou em nada na época, estava atrapalhada com a turma muito barulhenta. Assinei atrás do atestado sem olhar para ele.
Vi que tinha a assinatura de mais 3 professores, inclusive o do Fábio, professor de biologia, que encontrei chorando na sala dos professores quando apitou o sinal do recreio.
Eu me aproximei e só assim fui tocada pela situação.
- Vc viu a Giovana com aquele atestado ? Ele falou e eu calei - Eu e a Nádia já tentamos tanto engravidar, já foram duas perdas.- continuei calada. Só passei as mãos em seus cabelos acariciando maternalmente.
Giovana comia seu lanche e não parava de falar e não sei se pelo cansaço ou sei lá o que, minha mente se transportava, eu a escutava baixinho e eu procurava na memória a frente de uma casa que eu a esqueci por muito tempo. Mas a imagem veio nítida: muro branco com grades azul marinho. Casa recém pintada de branco com janelas de madeira azul marinho. E ao mesmo tempo vi a mão daquele homem repleto de pulseiras de ouro.
Afastei a imagem da cabeça para dar atenção à fala de Giovanna.
- Você sabe,né, professora? Por sucção foi uma vez só. Meu pai, que Deus o tenha, que pagou. Das outras vezes foi curioso e uns medicamentos, chás. Nem sei dizer direito .
Eu já não sentia mais fome, o sanduíche, agora na mesa, não comeria de maneira alguma.
- Às vezes, o negócio fica difícil de sair.
Ela seria mãe pela segunda vez e ainda tratava os bebês que abortaram por " negócios " O rumo da conversa estava pesado demais para mim. Então resolvi me despedir. Fui amável falando que seria uma boa hora do parto e saí dali sem terminar meu lanche.
Acabei ficando com uma pontada de dor de cabeça durante as aulas que ministrei naquela noite. Talvez seria apenas porque não me alimentei bem o dia todo.
Ao chegar em casa estava morta de fome e com dor de cabeça terrível mas preferi antes de comer, tomar um banho quente de banheira.
Entrei na água e senti que todo meu corpo estava tenso. A dor de cabeça era forte. Porém a água parecia ter um efeito relaxante e me deixei entregar, corpo e alma, aquela sensação.
Mas as imagens vinham em flash. Gostaria muito de ter alguém para conversar naquele momento. Mas divorciada pela segunda vez e os dois filhos já crescidos, tinha que me contentar com meu confortável apartamento silencioso. Não optei nem por ter um animal de estimação. Nada que me prendesse a atenção.
As imagens da casa e do homem com pulseiras de ouro voltavam à minha mente.
O corpo começava a relaxar, ainda enfiei duas vezes a cabeça dentro da água mas era impossível tirar tudo da mente. Só agora, o encontro com Giovanna na lanchonete surtia efeito sobre mim.
Sim, eu já fizera um aborto na vida e era algo tão trágico na minha existência que o tom de banalidade com que Giovana tratava o assunto me afetava de forma profunda.
Então comecei a lembrar do pai do meu bebê, homem que nunca mais eu vi mas que tinha notícia através de amigos. Notícias distantes me informaram que a uns 5 anos ele teve um AVC muito forte e vivia numa cadeira de rodas.
Era um homem viril, esportista e muito sorridente. A atração que tivemos um pelo outro foi imediata e mais forte que o fato dele ser noivo, já com data para casar. E veio a gravidez .
Ele ainda tentou contornar dizendo
- Você até pode ficar com a criança, eu ajudo, mas nunca vou assumir. Nunca diga a ninguém que o filho é meu.
Naquela época não tinha exame de DNA. E eu era muito imatura e recém saída de um casamento relâmpago e com total dependência de minha mãe, rígida e severa. E ainda por cima com um filho de 3 anos de idade.
Fui ao meu obstetra e relatei minha situação. Ele iria me ajudar caso eu optasse fazer o aborto. Ele achava que eu não estava decidida.
Não lembro quando aceitei a ideia. Num momento eu anotava um endereço e um telefone e no outro já estávamos em busca de uma casa no bairro de Bonsucesso.
O pai da criança foi quem me levou e ninguém nunca soube do ocorrido.
Demoramos muito para achar o endereço por ele não conhecer nada aqui do Rio de Janeiro. Eu não pensava em nada. Vestida num jeans desbotado e uma camiseta amarela, estava confortável mas só queria que tudo acabasse e eu poder estar de volta a minha casa.
Finalmente chegamos e as lembranças agora ficam pior pois não lembrava da fisionomia das pessoas ou do decorrer dos fatos.
Fomos recebidos por uma mulher e logo passados a um homem. O tal homem que eu tinha a nítida lembrança das pulseiras de ouro. Acho que de um sorriso também lembrava e de uma camisa branca. Mas o que ficou na mente foi as mãos. Um relógio dourado em uma e um bracelete fino e pulseiras no outro. Não lembro de vozes ou de conversas.
Logo depois estava sozinha numa sala com outras mulheres. Ninguém falava nada. Não sei se me despedi do pai da criança.
Fui conduzida a uma sala de exame ginecológico onde tinha um médico que não me comprimentou. Deitei na maca e ele fez um exame de toque e recolheu material . Tudo de forma fria e brutal. Voltei com lágrimas nos olhos para a sala.
Fomos induzidas a sair pelo fundo da casa e entrar num carro que dirigiu por pouco tempo. E a nova sala que estávamos era ampla com um bar num canto onde estava sentado um homem. As paredes eram vermelhas e o carpete também. Eu só me lembro de uma mulher que parecia já estar ali dizer.
- Temos que sair juntas daqui, compreendem ? Ninguém deixa ninguém para trás.
Eu concordei com a cabeça. E então não me lembro de nada.
Não lembro para onde fui conduzida, não lembro da sedação. Não lembro de nada.
Só acordei , não sei quanto tempo depois numa cama estreita e muito baixa e senti que havia um chumaço de gases entre as minhas pernas. Não deu tempo de elaborar o pensamento pois uma mulher entrou jogando nossas roupas e dando um absorvente para cada uma.
Lembrei que todas tinham que sair juntas dali, mas uma senhora muito magra começou a vomitar e não conseguia se vestir. A mulher pronunciou algumas palavras mas eu só entendi:
- Ela não vai agora não.
Não encontrei também aquela que parecia mais experiente.
Só lembro de estar vestida, amarrando o cadarço do tênis e o homem mandando gente se apressar.
Logo estávamos no carro voltando para o que parecia ser a clínica. Muros brancos com grades azul marinho. Casa Branca com janelas de madeira azul marinho. Quando sai do carro avistei logo pai da criança. Fomos deixadas à porta da clínica à nossa própria sorte.
Voltamos para casa em silêncio e eu só queria um banho e me deitar.
A noite venho logo mas não consegui dormir pois sentia muita cólica.
Ainda vi ele por mais umas duas vezes depois do ocorrido, mas foi um amigo que me levou a meu obstetra. Eu sentia muita cólica.
-Está tudo bem. O serviço foi perfeito. Agora é só o útero gritando a sua perda.
Aquela última frase foi uma apanhada no meu coração. Não sei quando me dei conta de que estava arrependida do fato. Só me fechei para tudo que tinha passado.
Sai da banheira com um pouco de frio e com um início de cólica menstrual. Tomei um remédio, jantei o que sobrara de ontem e dormi profundamente. Estava disposta a não pensar no assunto. Era apenas um tempo esquecido que nunca compartilhei com ninguém.
Dei seguimento a minha semana sem nenhuma ocorrência especial, fora o fato de não menstruar. Eu, provavelmente, estava entrando na menopausa, pois isto estava acontecendo demais. Deveria marcar um ginecologista.
No final de semana só queria dormir até mais tarde, ler um livro e comer besteira. Atendi o telefone duas vezes, eram meus filhos. Um deles ainda insinuou um almoço de domingo na vovó, mas eu desconversei. Não queria ver minha mãe.
Mas na noite de domingo ela me ligou com aquele jeito faladeira dela. Queria colocar a conversa em dia e me deixar com um sentimento de culpa por não ter ido lá.
No meio da conversa ela disse :
- Lembra da Tânia a esposa do falecido Renato ?
- Sim lembro, o que tem ela?
- Ela nada. Lembra da filha mais velha? A Giovana ?
- Sim, estive com ela essa semana.
- Então ela.estava grávida e teve um parto prematuro. A criança não resistiu e ela está muito mal no hospital. Também né, filha ? Aquela menina já fez tantos abortos. Igual a mãe.
Eu não ouvi mais minha mãe dizer nada só compreendi que Giovanna ia se recuperar. Então não era tão grave assim. Ela só precisou remover o útero.
Foi uma eternidade aquela ligação. Quando finalmente minha mãe desligou senti uma pontada na minha barriga, as cólicas estavam voltando. Senti que menstruava. Não percebi que não acendi nenhuma luz da casa. Não deixei o pensamento voltar ao tempo esquecido. Fui para o banheiro, acendendo a luz e vendo meu rosto no espelho. Só uma frase vinha à minha mente.
- Agora é só o útero gritando a sua perda.
FIM