O vagão para o ano passado
Rio de Janeiro, Centro.
Sabe aquele dia em que nada dá certo? É num dia desses que a nossa história começa:
Lua desceu as escadas pulando os degraus de dois em dois, enquanto consultava para qual lado da estação deveria seguir. Observou a plataforma de embarque ao seu lado esquerdo e seguiu apressadamente. Frequentava pouco as estações do metrô, mas hoje, com a greve dos rodoviários, não tinha outra opção economicamente viável para chegar ao trabalho na zona sul. A cidade estava um verdadeiro caos e o trânsito que já consumia -se em desordenado amontoado de veículos, estava ainda pior. Parecia que toda a frota do Rio de Janeiro estava posta às ruas. Menos a de ônibus.
O trem do metrô seguia e a cada estação abarrotava-se mais de passageiros num aglomerado de gente sem fim . A partir de certo ponto, os vagões foram se esvaziando para que cada pessoa tomasse seu destino.
Lua ouviu o aviso da próxima parada e instintivamente preparou-se para o desembarque , apalpou os bolsos , conferiu a nécessaire, arrumou os cabelos e dirigiu-se à porta de saída.
Era por volta das seis horas da manhã quando somente ela desembarcou na estação. Aquele fato a deixou confusa porque geralmente dezenas de pessoas se aglomeravam dentro do vagão e se preparavam para o desembarque. Mas apenas ela desceu. Observou instintivamente ao redor e apertou a pequena bolsa contra o antebraço e as costelas e começou a subir as escadas para ter acesso à avenida Vieira Souto.
Contudo um fato curioso acontecia à medida que ia transpondo os degraus, o próprio piso no chão ia tomando um aspecto descolorido e envelhecido,como se o tempo o desbotasse a cada passo dado. Uma sensação de medo tomou -lhe o peito e ela voltou seu olhar para trás, o trem do metrô já tinham sumido pelo túnel e somente as luzes faziam aquele instante não parecer uma alucinação. Ela pensou em voltar, mas o deserto daquele lugar a impeliu a seguir.
Quando chegou enfim ao térreo ,Lua apavorou-se, não era naquela estação que deveria descer. Não havia praticamente nada ao seu redor, a cidade, de alguma forma tinha desaparecido, a multidão de transeuntes e seu burburinho não estavam ali,nem ruas, nem prédio, somente uma relva baixa e com ela uma espécie de pastagem para gado e uma rua de terra batida e avermelhada cercada por ambos os lados com arame farpado já de aspecto envelhecido tal quais alguns mourões de madeiras que também já se tornaram deteriorados pelo tempo.
Capins altos, gramas e arbustos invadiam o que seria o centro de uma Ipanema sem o mar e ruas, trânsito e tudo o mais. Lua se perguntava onde fora parar. Uma pequena estrada de terra batida se formava à sua frente, e numa distância de dois ou três quilômetros adiante ela podia ver uma fumaça tênue subindo ao céu, indicando uma chaminé de alguma casa em meio aquele lugar perdido. Ela olhou ao seu redor, nada mais havia que indicasse onde estava. Apenas o céu espesso em nuvens indicava uma possível tempestade há qualquer momento. Era melhor apertar os passos e seguir rumo à construção.
Um sol morno e hora encoberto pelas nuvens tingia de vermelho o céu de um tempo e lugar difícil de precisar, não havia em suas memórias imagens daquele ambiente com aquele clima denso e pesado.
Lua tirou as sandálias mas as calçou rapidamente, as pedras no caminho a incomodavam como espinhos perfurando a pele. Um suor grosso e quente lhe descia pela têmpora retirando do rosto em líquidos escuros os entornos de sua maquiagem feita pela manhã.
Caminhou rapidamente por alguns minutos, mas o cansaço lhe cobrou a pressa e ela sentou numa pedra a beira do caminho. Esperou alguns minutos até prosseguir novamente. A estrada estava completamente deserta, nenhum sinal de animal ou gente a léguas de distância. Somente a casa estava lá, ainda diminuída pela lonjura, com a chaminé exalando a fumaça azul e rala. Não havia vivalma para ao menos lhe informar as horas ou onde se encontrava ou para onde deveria seguir.
Em pouco mais de quarenta minutos chegou à uma porteira enorme, onde podia-se avistar dois pés enormes de amêndoas e ao fundo uma casa simples , com um cercado para galinhas e patos. O frescor daquele lugar lembrou-lhe a adolescência, quando ia para o sítio dos avós no interior.
— Ô de casa!– chamou ao mesmo tempo que batia palmas.
Ninguém lhe respondeu e ela prosseguiu mais algumas vezes com o seu chamado enérgico. Por fim, atravessou um dos braços por cima da porteira e destravou um pedaço de madeira que a mantinha fechada e entrou. Não eram mais que vinte passos dali até o alpendre da casa. Chamou novamente.
Ninguém veio abrir-lhe a porta, então ela testou a maçaneta. Estava destrancada. Por um instante ficou indecisa, mas empurrou a porta e entrou.
Era uma sala simples,com poucos móveis e alguns quadros na parede. As pessoas nas fotografias lhes eram completamente desconhecidas como aquele lugar e época.
Lua permaneceu alí, em pé, perdida no que fazer. Quando decidiu abrir a porta e voltar por onde veio ouviu do lado de fora o ruído de passos de alguém se aproximando. O coração ,que já lhe fazia falta naquele instante, quis fugir do seu peito de tão acelerado.
Uma mulher, de estatura média, entrou, com um pequeno balde de água na cabeça, envolvida por uma rodilha de tecidos a protegê-la. Depositou o balde no chão e respirou de cansada sem importar-se com a presença de Lua.
— Oi, minha filha, sente-se, fique à vontade. Disse enquanto ajeitava a barra do vestido comprido e surrado .
Lua a olhou com receio, suas vistas embaçadas pareciam lhe pregar uma peça, aquela mulher mudava de semblante a cada instante como a querer enganar seus sentidos. Num segundo tinha o aspecto de sua avó, noutro já parecia sua mãe e noutro algumas de suas tias. Ela parecia ter entrado num transe que a fez perder a concentração.
— Mãe!?! É você? — Perguntou confusa.
A figura da senhora à sua frente tomou a forma de uma pessoa jovial e meiga.
— Não, claro que não!
— Não entendo …Então…
— Eu sou você, Lua. Ou melhor,sou o passado que insiste em levar consigo no seu dia a dia,sou suas frustrações, julgamentos e culpas…Você está presa à mim e precisamos decidir o que fazer.
Lua sentou-se perplexa.
Um silêncio invadiu a sala e ela lembrou-se dos pais.Sua mãe ainda viva, a quem ela tanto atribuía suas frustrações pelo modo que fora criada e o pai,que jamais conhecera e não sabia se estava vivo ou morto.
—O trem não é aleatório,Lua. Você é quem escolhe o seu destino. Se não escolher, ele vai decidir por você. A culpa da vida que leva não é dos seus pais, mas somente sua, você está exatamente onde se colocou. Reclamar e culpar alguém não mudará a situação.
Lua desandou num choro profundo enquanto imagens do seu dia a dia lhe perturbavam a consciência. Era necessário superar traumas, era preciso rever conceitos . Inconscientemente ou não as experiências ruins a impediam de seguir numa vida saudável e cheias de oportunidades, as lutas diárias a deixavam sempre na defensiva ou expectativa de voltar a reviver momentos desagradáveis de sua existência.
— É necessário perdoar, e principalmente se perdoar para ressignificar sua vida e abrir as portas para o novo , Lua. Você vive amargando um passado que já não é seu, e isso a impede de muitas oportunidades.
Lua assentiu com a cabeça. Como não percebera o quanto estava afundada em lástima num mundo que já não era seu? Sim, era esse o motivo de nada dar certo, desse invólucro de acontecimentos e ideias negativas numa força invisível que a impedia de seguir adiante. Ela precisava ser uma nova mulher.
— E como faço para livrar-me disso tudo?
— Embora o reconhecimento seja necessário, é preciso agir e mudar o pensamento. Você pode voltar agora para a estação e decidir seguir em frente ou pegar o próximo trem até a sua infância. Mas isso não mudará o seu passado . Já o futuro, você pode começar a escrevê-lo nesse instante. Vá, Lua, o trem já vai partir, ou você ainda quer permanecer aqui?
Lua saltou do sofá, abriu com força a porta e correu o mais que pôde para fora daquele lugar estranho e cheio de angústia.
O tempo lá fora era outro e o lugar também. uma linha férrea passava de frente a casa e numa curva bem lá atrás o trem assobiava se aproximando enquanto soltava tufos de fumaça negra para o céu.
Ele estacionou a sua frente e ela entrou. Não lhe pediram bilhete, mas tinha no peito uma passagem para o futuro.
Março 2024