Papagaios Me Mordam

Dona Cinara estava radiante. Acabara de abrir, ali mesmo, na garagem, a carta da Previdência Social que comunicava a sua aposentadoria. Mal embicou para a porta, afim de ligar para a filha e contar a boa notícia, um rapaz a chamou no portão.

- Ei moça! Moça! Tô vendendo esse lôro. Interessa?

Ela o mediu de cima a baixo, sorrindo, um pouco influenciada pela notícia que acabara de receber e um pouco por que o "sem noção" a chamava de moça.

O animal - me refiro ao papagaio - era bem graúdo, empoleirado no pulso do sujeito, que conservava o braço à maneira de um Napoleão posando para um retrato . Sua plumagem - de um exuberante colorido característico - atestava a boa saúde e ele meio que dançava no galho improvisado. Dona Cinara fez aquela pergunta tão conhecida entre nós, brasileiros, cuja resposta negativa sempre traz uma carga considerável de alívio e conveniência:

- E quem me garante que não seja roubado?

O rapaz, magro, mal vestido e desdentado - do qual não se poderia esperar exatamente um exemplo de honestidade - apenas disse o que ela desejava ouvir, enquanto, de maneira discreta, procurava se certificar de que não eram observados:

- Né não senhora, sô trabalhadô!

- Trabalhador, é? Sei... E quanto quer nele?

- Trezentos!

- Trezentos? Pois dou cem!

- Cem? Cem não!

- Cento e trinta.

- Duzentos e cinquenta.

- Duzentos. É só o que vale!

- Fechado!

Sorrindo, como estava agora, dava pra ver que lhe faltavam bem uns três dentes (pelo menos na parte frontal da boca). Mas com a venda o dia tava ganho, e era isso que importava!

Dona Cinara pediu que aguardasse um pouco, e alguns minutos depois voltou lá de dentro com o dinheiro:

- Vê lá, heim, rapaz! Meu irmão é delegado! Delegado, tá ouvindo?

- Não, moça... É coisa boa... - e, apontando um balão que subia ao céu naquele momento, o vendedor sumiu deixando-a distraída com a imagem. Ela balançou a cabeça num movimento de "tudo bem, faz parte".

- Vou te chamar de Pavarotti! - anunciou ao papagaio.

A ave a olhava com aquele olhar característico, mirando com um olho de cada vez e meneando a cabeça de um modo engraçado. A mulher estava exultante:

- Diga alguma coisa, amiguinho. Você já é grandinho... Deve falar bem...

O pássaro foi deixado em cima de um aparador, no lavabo. Por precaução, ela fechou a porta antes de sair. Quando voltou, com um poleiro de três estágios, ração e brinquedos, acomodou-o na lavanderia. O dia transcorreu mais tranquilo do que ela desejava. Para dona Cinara, o silêncio, seu companheiro habitual, agora se tornava quase insuportável. Quem quer tranquilidade que arranje um gato! E olhe lá! - pensava com seus botões.

Mas foi no dia seguinte que a sua aquisição realmente tomou forma. Não eram cinco horas da manhã quando um sabiá laranjeira acordou a sua casa. Ela se levantou e foi até lá, constatar pessoalmente o que já imaginava: o papagaio imitando o pássaro que, lá fora, bem longe anunciava o raiar do dia. A mulher voltou pra cama e a ladainha durou uns minutos, quando mais tarde deu lugar a uma pomba "asa branca", seguida de um "bem-te-vi" com todas as suas variações de trinado. Com o dia claro e dona Cinara já de pé, considerando seriamente a validade de sua aquisição, veio uma imitação satisfatória de corruíra e duas variações de cantos do trinca ferro.

- E falar, que é bom, Pavarotti? Nada?

A ave dava três passos para a esquerda e três para a direita, em cima do poleiro.

- Entendi. Cantar e dançar. Pois olha aqui, seu fanfarrão... te dou dois meses pra alguma coisa acontecer... essa comida não foi barata, e a recepção também não é de graça... o senhor trate de mostrar serviço, senão... rá-ré-ri-ró-rua!

O bichinho olhava pra ela com a carinha mais inocente desse mundo.

- E você não me ganha com essa cara de broa mal assada!

Todas as manhãs, a sinfonia se repetia: sabiá, pombo, bem-te-vi, curruíra e pixarro, na mais perfeita ordem. E o tempo passando... Dona Cinara, que até então não fizera planos de viajar, agora aposentada e dona de um orçamento mais confortável, se sentia presa por causa da recente aquisição. Quase um mês! A posse de animais sempre esbarra nesse incoveniente: seja cachorro, gato, galinha, codorna... quando queremos ficar uns dias fora de casa, a porca torce o rabo. Além disso, as imitações do papagaio já tinham dado a devida cota de dor de cabeça: alguns vizinhos, incomodados com o barulho, e certos de que ela estava aprisionando aves silvestres, ameaçavam chamar agentes do Ibama para averiguações. Também por causa disso, as palavras do irmão Onofre, lá na igreja, já reverberavam em sua consciência, a respeito da posse de aves: "Se Deus fez com asas é para voar, simples assim!".

E falando em irmãos de fé, Orlando, o pastor da sua igreja, anunciou que lhe faria uma visita na manhã seguinte. Ela concordou com a cabeça. A visita regular do pastor era corriqueira entre os fiéis, e ninguém ousava desviá-lo do intento. Ela, que coordenava a ala dos anciãos, ainda menos.

Por precaução, logo pela manhã, resolveu deixar o bicho preso numa gaiola que arranjou e coberta por uma lona de feltro. Mesmo assim, já acomodado na cozinha, onde tomava uma xicara de chá, e terminava a terceira fatia de bolo de laranja, Orlando não pôde ignorar o verdadeiro desfile da passarada... O pastor, com um riso curioso, comentou:

- A irmã tá criando passarinho?

- O quê? Ah, esses cantos são imitações do loro... - disse desconcertada.

- Loro? Um papagaio?

- Sim. - Ela tentou abreviar a conversa com secura.

O homem, mesmo percebendo seu constrangimento, fez questão de dizer o quanto adorava papagaios. Uma referência às boas recordações de infância. Pena que fossem tão caros no mercado legal. Pediu para vê-lo, perguntando como ela o adquiriu. Ela, porém, fez de conta que não escutou a pergunta:

- Só que ele não fala nada! Desde que chegou, só umas imitações...

Mas o pastor já estava lá na lavanderia. Dona Cinara correu atrás dele e descobriu a gaiola. O carinha de anjo se bateu lá dentro.

- Precisei deixar ele aí para não atrapalhar nossa conversa...

- Puxa, que dó! Pode tirá-lo, eu não me importo. Não precisa mantê-lo preso e coberto por minha causa.

Mesmo contrariada, dona Cinara concordou. O papagaio voou direto para o ombro do visitante. E para deixá-la embasbacada falou:

- Diga alguma coisa, amiguinho. Você já é grandinho... Deve falar bem...

O líder religioso ficou exultante:

- Não fala?! Olha isso! - ele perguntou maravilhado, enquanto encarava a ave no próprio ombro.

O bicho continuou, com uma empolgação até então desconhecida:

- E você que não me ganha com essa cara de broa mal assada!

O pastor riu solto, colocando a ave de volta, agora no poleiro. Tentou mudar o rumo da prosa, aludindo ao que realmente havia motivado a sua visista: as mudanças que pretendiam imprimir na condução do culto:

- Então irmã... Compreendo que a ala mais conservadora vê com maus olhos, mas, se não inserirmos música animada e até dancinhas ao louvor, a mocidade vai embora. E sem mocidade não há futuro para a igreja...

A ave não se fez de rogada:

- Entendi. Cantar e dançar... Pois olha aqui, seu fanfarrão... te dou dois meses pra alguma coisa acontecer... a comida não foi barata, e essa recepção também não é de graça... o senhor trate de mostrar serviço, senão... rá-ré-ri-ró-rua!

- Pelo amor de Deus, pastor! Me perdoe, esse bicho é dos infernos! Não falava uma palavra até ontem! O senhor não leve em consideração, por favor...

O religioso se divertia.

- Não! De maneira nenhuma, irmã! Acho muito engraçado. Gostei dele! Isso é coisa contornável. Parece um animal jovem, aprende outras coisas...

- Ah, não sei... já estou tão arrependida dessa aquisição, se o senhor soubesse... Quarenta dias de barulho e desavenças com os vizinhos!

Orlando olhava o bicho dançando no poleiro. Estava verdadeiramente encantado.

- Irmã, estou meio sem dinheiro e minhas contas vão demorar a se equilibrar, mas... se a senhora aceitar esse relógio de pulso, poderíamos fazer uma troca. Se a senhora desejar, claro! - aqui já estavam acomodados novamente na cozinha. Lá no poleiro, o bicho já plagiava um pixarro novamente.

Dona Cinara escutava o Pavarotti e olhava pro relógio. Um relógio grosseiro, masculino. De nada serviria para ela. Ela soltou os ombros e concordou. Pelo menos ficaria livre daquela tranqueira.

- Eu lhe garanto, irmã Cinara, esse relógio não vale menos que quinhentos reais!

- Ah, pastor, eu...

- E quem me garante que não seja roubado? - gritou o lôro, que entrara e estava ali no chão sem que percebessem.

Os dois se olharam e soltaram a risada. O bicho não tinha jeito mesmo.

Acertaram a troca e Orlando partiu com o bicho na gaiola, depois de comer mais dois pedaços do delicioso bolo. Foi preso lá no portão mesmo. A polícia ambiental tinha montado campana na frente da casa. Dona Cinara, lá da cozinha, não viu nada, ainda que tivesse achado estranho o Pavarotti gritando lá na frente:

- Meu irmão é delegado! Delegado, tá ouvindo?

O Orlando dançou miudinho, sem conseguir que acreditassem na sua versão dos fatos. Nada que um ano de trabalho comunitário não resolva.

Ah, o relógio ela trocou por uma tartaruga, que três meses depois foi trocada por uma bicicleta.

GEORGES
Enviado por GEORGES em 27/03/2024
Reeditado em 07/04/2024
Código do texto: T8029102
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