"A mar, marée, bateau."
Vou falar do dia em que eu morri.
Primeiro era morno e calmo. Meu corpo, já de início em seu fazimento, nunca foi projetado pra andar, imagine nadar. Boiar sem findar é das ordenações mais complexas que tem.
Eu tenho dez anos e é meu aniversário. Minha família decidiu que ia ser boa ideia comemorar num parque aquático, um desses com tobogãs fluorescentes vertendo aos milhões, do chão até o mundo. Um lugar de recortes simétricos retângulos todos. O paraíso das piscinas.
Estou morto já há cinquenta segundos. O tempo se inunda, deforma, dobra-luz.
A reação comum seria fugir, agarrar a coisa água e procurar substância sólida, mas de alguma maneira fiquei amigo daquilo. Terra deriva. Útero a posteriori.
Úteros, eu acho, (digo acho, pois não lembro, mas já ouvi relatos sobre uma tal "memória uterina".) útero não se caminha, não precisa. Pelo contrário, lá somos nós o próprio caminho. Acalanto espasmódico, cochicho, livre. Preguiça.
Estou morto já há dois minutos. Meu oxigênio seca em inércia e mansidão. Meus pulmões nadam em sonho, sem barreiras, um firmamento de nada-de-escada.
Lembro de ver um borrão de luz e saber que era o sol, trêmula cintilância. Se desse pra escrever em água, teria ali o meu sorriso, até hoje, gravado.
Lembro de tristeza.
Lembro de ser içado pelo umbigo.
"D'accord, d'accord, d'accord, d'accord, d'accord, d'accord, d'accord, Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda, acorda"
Lembro de morrer.