O DEUS EM SILÊNCIO
Os sinais no solo tinham surgido discretamente, e ele tinha ficado surpreso com a sua existência. Primeiro tinham-lhe parecido um caminho, mas porque haveria um caminho ali, no meio do nada?
Não parecia ser apenas um trilho feito por animais, e também não se viam pegadas humanas, apenas uma leve falta de vegetação em alguns lugares e a terra mais clara e dura.
Isso deixara-o desconcertado e curioso. Seria um caminho? Aos poucos tinha descoberto pequenos sinais, difíceis de encontrar, e convencera-se de que realmente o podia ser. Assim, intrigado, tinha decidido seguir os sinais durante algum tempo para tentar entender onde levava.
De vez em quando tornava-se menos visível, chegava a desaparecer por completo quando o terreno era mais pedregoso, mas logo depois ele re-encontrava os vestígios e, seguindo-os, percebia que se afastava claramente da planície que vinha percorrendo e apontava à montanha distante. "É um caminho, não há dúvida!"- tinha ele pensado. E fora assim que ele havia começado a percorrê-lo, caminhando atento e curioso, e deixando-se levar em direção à montanha na linha do horizonte.
Caminhava muito, mas a montanha parecia sempre distante, e ele tentava caminhar mais depressa, exigindo mais às velhas pernas, querendo muito chegar mas sentindo como era grande a sua pequenez perante a imensidão do desafio que agora encarava.
Aos poucos ia ficando claro que chegar não seria fácil, mas sim um trabalho constante, demorado e penoso, sempre atento às minúcias e buscando orientações em todos os detalhes em seu redor. No entanto, ele não desanimava e usava todas as suas forças para continuar e tentar entender porque se tinha tornado tão importante aquele caminho.
De começo caminhava só algumas horas por dia, parando quando estava cansado e acampando até ao dia seguinte. Mas algum tempo depois já parava apenas o tempo suficiente para comer e descansar um pouco, ou para dormir.
Caminhava mesmo quando o sol o castigava, inclemente, de olhos postos no chão. Outras vezes prosseguia tremendo de frio, debaixo de chuva, gelado e entorpecido, cheio de dúvidas, mas caminhava sempre. Aos poucos o caminho fora-se tornando no seu único objectivo, na sua razão de existir, e ele esvaziava a mente de tudo o que não lhe fosse necessário para continuar. Por fim, era só mesmo o som da sua respiração acompanhando as passadas que o impedia de se esquecer de si próprio
.
Sobrevivia das bagas comestíveis dos arbustos, de mel quando o encontrava, e de pequenos animais que caçava com as armadilhas que deixava armadas enquanto dormia. Comia e logo depois continuava a andar, e muitas vezes a noite o tinha surpreendido caminhando ainda, magro e cansado.
Como a montanha começou a parecer-lhe já mais próxima e o caminho parecia subir sempre, tornando-se mais cansativo, ele começou a acreditar que chegaria dentro em breve e continuou a caminhar com energias renovadas. Descobria forças numa reserva de vontade que nem sabia que tinha.
Por fim, quando já lhe parecia que a caminhada seria eterna, e que os seus dias se resumiriam a caminhar, eis que o chão se tornou plano e, subitamente, o caminho desapareceu para dar lugar a uma clareira entre grandes pedras encostadas umas às outras, quase formando uma gruta no alto da montanha.
O vento era impedido pelas grandes rochas amareladas do lugar, que o deixavam em silêncio, e refletiam a luz do sol, tornando-a mais suave e dourada, intensificando as cores.
Foi então que percebeu que tinha chegado. "Agora já sei para onde me trazia este caminho. Era para este lugar encantador. Só ainda não entendo porquê..."
Olhando em redor, foi-se apercebendo dos detalhes. Percebeu que o sol nunca chegava até ao fundo da caverna, onde, já na sombra, havia uma pequena nascente que enchia uma concha de pedra. Saindo dela rumorejava um fio de água que contornava todo a clareira, mantendo verde o grosso musgo do chão e prósperas as pequenas flores que rodeavam uma grande pedra lisa que havia no meio, e que parecia quase um convite para que se sentasse a descansar e a comer.
A pedra estava morna quando se estendeu nela, de costas, acolhendo-o, convidando-o ao descanso, parecendo dizer-lhe que sim, que tinha chegado, e que aquele era o lugar que ele sempre tivera esperança de um dia encontrar. "Talvez o caminho me fizesse falta" pensou. "Não para ver onde chegava, mas para ver se chegava. Se conseguia aqui chegar".
Sentindo como estava fatigado, entregou-se ao calor que vinha da pedra enquanto pensava que talvez o caminho tivesse ainda uma outra virtude, a de o deixar tão cansado que só a sua mente ficava livre. E, mesmo assim, sem conseguir pensar em mais nada.
Pouco depois adormeceu e dormiu profundamente, como há muitos anos não dormia, esvaziado de si mesmo e sem sonhos.
Ao despertar, sentiu-se retemperado e cheio de energia. "Devo ter dormido o resto do dia de ontem, e depois toda a noite e durante toda a manhã de hoje!" pensou enquanto se espreguiçava lentamente. "Por isso me sinto tão bem!"
Claro que sentia muita fome, mas pouco depois encontrou muitos ovos nos ninhos que havia por perto, em redor daquele daquele lugar fantástico. E havia também pequenos frutos selvagens, comestíveis, que já conhecia de os ter encontrado pelo caminho. E a água era fresca e pura, na concha de pedra, quando a provou.
"De fome não morrerei, neste lugar. Parece ter tudo o que preciso!" disse a si mesmo, sem se aperceber que não pensava sequer em sair dali. Veio a pensar nisso muitos dias depois, quando as suas rotinas já estavam bem estabelecidas, e o seu conforto mais conseguido.
Tinha montado armadilhas nos arredores e descoberto que havia muitos coelhos e lebres, muitos pombos e rolinhas do campo. Por isso guardava sempre alguma carne, que secava num fumeiro improvisado entre duas pedras, receando que um dia a caça pudesse faltar ou que precisasse de provisões no caso de querer retomar a viagem. Mas não pensava realmente em sair dali, e esses cuidados faziam apenas parte da sua natureza precavida.
Tinha feito um colchão de erva seca trançada, que recheava com uma espécie de palha selvagem, e á noite colocava-o sobre a grande pedra lisa no centro da clareira. Depois deitava-se sobre ele, coberto com a sua manta de viagem, agraciado pelo calor que a pedra tinha acumulado do sol e que agora lhe entregava lentamente
.
Olhava as estrelas, que nunca tinha visto tão grandes nem tão próximas, noutro lugar, e acabava por adormecer enquanto absorvia a energia que o rodeava, ponderava sobre todas aquelas maravilhas e pensava em como se sentia feliz ali. "Talvez neste lugar viva um deus, e ele tenha decidido receber-me em sua casa..." pensou certa vez, antes de o seu corpo fatigado ceder ao sono.
Os seus dias eram ocupados em pequenas tarefas com as armadilhas, e com as tarefas normais necessárias à subsistência, mas sobrava-lhe tempo. E nesse tempo ele deixava a mente vaguear um pouco ao acaso, saboreando os pensamentos que lhe surgiam, procurando manter-se focado num só de cada vez, e sem saber que era uma forma de meditação isso que fazia.
De vez em quando, o pensamento acerca do deus voltava a surgir. "Talvez haja mesmo um deus aqui. Este lugar é diferente de tudo o que conheci. Até os meus pensamentos soam mais alto quando os penso. Será que o deus os escuta?". Mas ele abanava a cabeça e ria um pouco de si mesmo, como se a ideia fosse uma tolice.
Entretanto, o tempo passava. Ele sentia-se seguro e protegido, e ocupava-se das suas pequenas tarefas com prazer. Subsistia com facilidade, e depois de tudo, no tempo que lhe restava, sentava-se na grande pedra para repousar ou para comer.
Sentar-se ali tinha-se transformado num hábito, pois gostava de sentir o calor que dela emanava. Habituara-se a falar com ela usando o pensamento, e no seu espírito havia a convicção de que ela lhe respondia com silêncios, e que esses silêncios eram, afinal, a voz de muitas coisas de que nunca se tinha apercebido.
Nesses silêncios prosperavam as vozes dos passarinhos, alegres e brincalhões, e o cheiro doce das folhas dos arbustos. E havia o rumor lento do fio de água, circundando o lugar, num percurso tão antigo que tinha escavado na rocha o seu próprio caminho. E, às vezes, conseguia escutar a voz do vento assobiando do outro lado das grandes pedras, e isso fazia com que se sentisse ainda mais abrigado e acolhido, protegido pelo lugar e pelo deus que talvez houvesse nele.
Nesses silêncios prosperava a sua própria voz interior, que ele não escutava antes. "Talvez esta seja a voz do deus, assim, uma espécie de silêncio onde as outras vozes se escutam melhor. Até a minha voz...", pensava.
Grato, dedicava-se agora aos trabalhos do dia a dia com um entusiasmo que nunca tinha conhecido, e tudo aquilo em que se empenhava evoluía rapidamente. Muitas das coisas que fazia, nunca as tinha feito antes, mas aquele lugar dava-lhe confiança e ele tentava sem medo de errar, realizando e conseguindo o que pretendia. Isso trazia-lhe uma alegria e um sentimento de paz que eram novidade para si.
Um dia ficou pensando nisso, sentado na pedra quente, enquanto olhava o abrigo que tinha construído para o inverno. Tinha um telhado bonito, feito de palha, e estava encostado a uma das grandes pedras que formavam a gruta. E ele agora sentia que tinha ali uma espécie de lar onde podia acender um fogo e conservar o calor enquanto dormia, quando viessem as noites frias.
Nunca tinha feito nada assim, mas a verdade é que o abrigo estava pronto e agora ele tinha alguns pequenos confortos de que precisava, tinha mantimentos guardados de reserva, lenha guardada, e parecia-lhe que tudo tinha sido fácil e obtido sem grande esforço.
"Talvez o deus deste lugar tenha alguma coisa a ver com isso! Parece que quanto mais eu faço, mais ele me ajuda..." pensou ele para a pedra. "Talvez me tenha visto chegar, cansado e sem nada, farto de andar por aí, e tenha decidido ajudar-me". A pedra retorquiu-lhe com um silêncio rico de concordâncias que aumentou mais ainda a sua paz.
Assim, passou muito tempo até sentir falta de outras pessoas. O inverno tinha passado, as neves derretido, e havia um presságio de primavera no ar. Pela primeira vez pensou seriamente em abandonar o lugar e, se a ideia lhe agradava por um lado, por outro ele sentia-se quase como se estivesse traindo o deus que o tinha acolhido ali e com quem se habituara a falar em espírito, como fazia com a pedra e com os pássaros.
Várias vezes abandonou a ideia de partir mas, aos poucos, sempre regressava a ela. Por fim, acabou por decidir-se num segundo. Enrolou no cobertor as provisões que podia carregar, amarrou-o a tiracolo nas costas, por cima do casacão grosso, e deu uma última olhadela ao lugar.
Partiu alegre, sem olhar para trás e sem se despedir. Sentia-se muito mais forte e sem medos, e sabia que, fosse para onde fosse, levaria aquele deus consigo, e aquele amor que lhe dedicava. Levaria também aquela paz, que agora conhecia, e aquela capacidade nova de pôr o espírito em silêncio para se escutar a si mesmo.
Afastou-se pensando que o tempo acabaria por destruir o abrigo que ele tinha construído, e que o lugar voltaria à beleza natural que tinha aquando da sua chegada. E assim devia ser. Quem um dia viesse até ali precisaria de alcançar os seus próprios confortos, os seus utensílios e rotinas, e isso faria parte do diálogo que construiria com aquele deus em silêncio.
26/11/2018