Cultura enriquecida
— O que achou que estava fazendo, Ubiratan? Deixa-se os homens mais à vontade. O que eles precisam resolver é com a gente e não com você – disse o pajé impaciente com o rapaz.
— Mas eu não quero saber deles. E nem queria que viessem mais aqui. Toda vez alguém vai, toda vez eles trazem coisas que não precisamos e nos fazem engolir o que bem entendem.
— Calado. Ninguém está te suportando mais. Já disse e repito, se não quiser ficar pode ir, mas vai ter que ser naquele caminhão – disse, enquanto busca fugir do sol e punha seus óculos escuros com a armação dourada.
— Nunca que farei isso. É aquilo que acaba com as estradas, afasta os animais e deixa as árvores pretas. Quantos deles já não vieram aqui nesses meses? Eles se enchem com o que é nosso e devem fazer muito mais dinheiro que a gente.
— E o que você tem com isso? Fazemos o mesmo com eles. Aliás, muitos dos animais que atrapalhavam a trilha ou avançavam contra as pessoas, fomos nós que os tiramos. Essa é a troca, e é assim que nos sustentamos hoje ou você prefere sair para caçar e comer carne crua e mal passada? Já me cansei dessas velhas práticas, eu vivi elas todas, rapaz – caminhou, o pajé, para debaixo de uma choupana aberta, uma que tinha sido feita para o descanso de visitantes e logo o serviram com drinks.
— Quero que sejamos ricos, quero a nossa prosperidade. Mas isso não pode ser feito de uma maneira que possamos manter a nossa identidade?
— Com palhas e artesanato quando um filhote de qualquer coisa paga o nosso mês? Já te disse isso muitas vezes, identidade é o que somos, não o que fomos. Já é homem crescido, deve se desapegar desse passado. Sabemos dos teus pensamentos, mas deve lembrar que nós éramos os pobres e sofridos da região. Já esqueceu que foram essas coisas que te mantiveram saudável?
Ubiraci já não tinha o que dizer. Saiu dali consternado e sentindo-se derrotado. Alguém poderia dizer que o pajé ou qualquer um o tratava assim por mal? Sabiam que era alguém sério e sofrido, afinal havia sido criado por todos ali. Mesmo adulto não se esperava muito além da gratidão e que buscasse algo para se empenhar, mas detinha-se sobre as lembranças de um momento que para os outros também foi terrível. Ali todos sabiam o que era trocar as as horas do sono por preocupação por conta de algum barulho na mata à noite.
O pajé e sua tribo viram que havia muito mais que aquela vida e estavam dispostos a melhorar sua situação. Toda vez que homens de fora faziam negócios com aquela tribo o pajé trocava de carro, relógio ou mesmo ampliava os cômodos de sua agora grande e pomposa residência. Vergonha? Nenhuma. Quem tem e pode ter deve aproveitar, não há nada de errado nisso. Este é o pensamento.
Esses conhecedores da mata aprenderam a lucrar e acumular primitivamente o capital desde os primeiros contatos com equipes militares e alguns grupos de caminhoneiros. Descobriram a renda, os luxos, os eletrodomésticos, a tecnologia e as facilidades que vinham com isso. E o melhor era que só custava aquilo que não os importava ou incomodava, como algumas frutas que para eles eram comuns, mas para outros “marcas patenteadas” e “commodities”, seja lá o que isso fosse, animais selvagens e perigosos, que outros transformavam em roupas “de marca” e carpetes inofensivos. Ganho duplo.
Falar de tribo em relação a eles é um jeito de dizer, pois apesar de nativos, parecem mesmo uma cidadezinha turística em determinadas épocas. Vivem das vendas e trocas, da manufatura e até de canais e lojas virtuais para apresentarem como são integrados ao ritmo da sociedade pós moderna e pós industrial.
A curiosidade levou muitos para a cidade dos homens. Lá onde se experimenta de tudo, um mundo de sensações e possibilidades abertas conforme as quais se moldam conhecendo novas cores, tendências e neons, trocando o cheiro da terra por algo mais sofisticado, perfumado e marcante.
Ubiratan talvez fosse o único a ainda ver algo de errado ou estranho naquele novo estilo de vida. A verdade era que tudo estava sendo facilitado. O trabalho e a saúde se tornaram melhores com a abundância. As pessoas migravam por conta própria atraś de melhores condições para si e suas famílias. Mas ele se sentia cada vez mais sozinho. Os outros jovens seguiam seus caminhos enquanto ele estava apegado ao que sobrou de outros tempos junto a lembrança de seu pai e mãe.
Perderam as vidas em um desastre que ocorreu no meio de sua, até então, aldeia. Por algum motivo um incêndio se principiou e a sua casa foi uma das primeiras a serem atingidas naquela madrugada. Só conseguiram tirar de lá o pequeno Ubiraci que por pouco não se foi sufocado. O fogo havia se alastrado rapidamente e em todas as casas havia algo de inflamável, o que causou uma série de acidentes. Acabou sendo criado por vizinhos e parentes. Ele dava a isso o nome de “destino” ainda que alguns chamavam apenas de “sorte” ou “má sorte”. Ele não culpava a alguém da tribo e sabe que outros também tiveram suas perdas. Agarrado ao trauma tinha medo de que mais mudanças causassem mais acidentes.
Sua angústia continuava no ritmo da modernização da tribo, agora vila, e os novos costumes. Ao falar de suas insatisfações acaba por ser repreendido, por parecer que quer ficar para sempre naquela mesma condição de dificuldade, como se os riscos fossem menores. Conheciam as suas razões e haviam presenciado aquela dor, afinal era a deles também, mas após anos buscando uma vida melhor e tendo a oportunidade de aproveitar coisas boas já não queriam saber de alguém que era incapaz de pensar em novas alternativas ou se adaptar às suas condições.