FOI O VENTO
POR: Sônia Machado
Capítulo 34
NAQUELA TARDE O VENTO BATIA COM FORÇA NA imensa janela de vidro do escritório e Arthur levantou o olhar naquela direção. O vento parecia chamá-lo a reviver lembranças, algo que ele tinha evitado no último ano. Há quanto tempo ele não olhava para a janela ou prestava atenção no vento?
—Desde que Lívia pedira um tempo... — Ele respondeu para si mesmo e se surpreendeu pelo fato de ter pronunciado o nome de dela.
Fora um ano de muitos projetos, trabalho e viagens que o fizera ganhar cada vez mais destaque na profissão. Mas Arthur pouco se importava com isso. Era o prazer de criar algo que ele gostava. A pretensão estética e criativa que a arquitetura como arte visual possibilitava que fascinava Arthur. E também tudo que ele queria era se manter ocupado. Chegava cedo e saia tarde do trabalho e mal parava para comer alguma coisa.
Tanto empenho em trabalhar havia sido motivo para o rotularem de um homem vazio de sentimentos, frio e calculista, embora encantador e confiante. Arthur pouco se importava com esses rótulos. Ele sabia que não era nada disso. Mas até gostava desse afastamento de certas pessoas. Era providencial, pois não queria ficar justificando seus comportamentos. Que pensassem o que quisessem. Ele tinha se tornado imune a muitas coisas, inclusive aos questionamentos alheios. Arthur descobriu, contudo, que não era imune ao vento de inverno porque ele tanto bateu na janela que Arthur levantou o olhar. E não era imune à lembrança de Lívia. Um ano depois ele teve certeza.
De súbito se levantou e pegou o casaco.
—Vou caminhar... — dirigiu-se a Mário que trabalhava na mesa ao lado.
—Uau... Você se curou finalmente? — Mário bateu na mesa, o que atraiu os olhares dos outros funcionários.
—Me curei? Não entendi. — Arthur sentiu-se um pouco incomodado com os olhares em sua direção. — Não me lembro de ter estado doente.
—Não lembra? — Mário deu uma gargalhada. — Esqueça... Vá caminhar. — E levantou-se da mesa para guardar uma pasta, feliz da vida porque o amigo e chefe finalmente havia quebrado a dura rotina de um ano. O fato de anunciar que ia caminhar era, sim, o sintoma visível da cura de Arthur, cujo sintoma era se matar de trabalhar.
Arthur revirou os olhos e atravessou a enorme porta de vidro. Ele foi direto para a Rua Tonelero onde caminhara tantas vezes com Lívia. As lembranças dela naquela rua eram tantas misturadas ao vento e as folhas rolando pelas ruas.
—Foi o vento... Sim... Foi ele... —disse para si mesmo. — Quem pode com o vento de inverno? E a imagem de uma menina correndo atrás de uma boina de tricô veio-lhe à mente.
Estava tão distraído em recordar e nem se deu conta quando seu corpo bateu de encontro a outro corpo.
Olhos cor de mel o fitaram assustados. Uma boca se abriu para dizer algo, mas calou-se. Lívia e Arthur ficaram se olhando por um instante. Apesar da emoção do momento, Arthur fez-lhe a reverência de sempre. Era seu jeito irreverente de ser quando estava diante de Lívia. Um sorriso no canto da boca revelava que o tempo não apaga certas coisas e muito menos explica. Só uma coisa é certa: o passado sempre volta para nos jogar na cara nossos erros do passado. Teria dito, um dia, D. Esmeralda e Sr. Lopes.
—Arthur... — A voz de Lívia saiu enfim. A constatação saiu apenas num sussurro, entretanto.
—Lívia... Como está? —Arthur perguntou meio inseguro. Depois de um ano é impossível prever qualquer coisa com relação ao outro. Ela poderia, por exemplo, ter um namorado.
— Seguindo a vida. — Lívia responde, sabendo que era uma resposta lógica, pois que outra opção um ser humano teria senão seguir em frente? Foi então que ela se lembrou de uma frase de Caio Fernando de Abreu,
— “a moça levanta e segue em frente. Não por ser forte, e sim pelo contrário: por saber que é fraca o bastante para não conseguir ter ódio no seu coração, na sua alma, na sua essência”.
—Foi justamente isso... — pensou enquanto olhava para Arthur, tentando adivinhar se ele havia sido forte ou fraco ao longo daquele ano.
—E você? —perguntou.
—Seguindo a vida também. — Arthur respondeu e pensou nas últimas palavras de Lívia antes de fechar a porta na sua cara há um ano “preciso de um tempo”. Portanto, seguir em frente era sua única opção também, até porque como disse Martha Medeiros, “nenhum amor deve ser mendigado”.
Seguir em frente nem sempre é fácil, e a única forma de fazer isso é se desapegando do que ficou para trás. No entanto, em certos casos, seguir em frente na vida, também pode significar voltar para trás. Não foi isso que Lívia e Arthur fizeram nessa tarde ao voltarem ao local do primeiro encontro?
O vento soprou os cabelos de Lívia jogando uma mecha em seus olhos. Institivamente Arthur se aproximou mais e o recolocou no lugar.
—Está caminhando por aqui... Suponho... — Lívia arriscou meio sem jeito.
—E você está indo à padaria... Suponho... — Arthur arriscou.
—Sim... Estou...
Foram juntos e voltaram juntos. Calados. Não havia palavras suficientes que definissem o que quer que seja naqueles instantes. Às vezes o tempo cobra certas coisas em silêncio. Fica ali, fazendo a atualização dos juros e correção monetária.
Pararam em frente ao portãozinho. Lívia o abriu e o ranger era quase uma súplica.
— Preciso subir... — falou. Não convidou Arthur para entrar. Teve receio de que ele negasse, afinal ela que o despachara há um ano.
— Sim... Claro... —Havia decepção na voz de Arthur. Mas sabia que era esperar muito que ela o convidasse a entrar.
—Até mais... —Arthur fez a reverência de sempre.
—Até mais então... — E a despedida de Lívia tinha uma esperança no ar. Mas subiu a escada sem olhar para trás e entrou em casa. Arthur esperou que a porta batesse e então retornou a caminhada chutando as folhas secas pela rua.
No outro dia Arthur voltou a caminhar na Rua Tonelero. E no outro... E no outro... E Lívia sempre estava lá, indo ou voltando da padaria. As desculpas de sempre. Encontravam-se no meio do caminho. Já não era uma coincidência. Era apenas o orgulho sendo levado pelo vento. Era o tempo que ela havia pedido a Arthur fazendo sua cobrança.
—Esse ano está mais frio... — Lívia ficava tentando encontrar palavras para dizer e às vezes elas vinham com essas observações banais e talvez, tolas, sobre o tempo. Ela levantava a gola do casaco quase sem cessar. Ele enfiava e retirava as mãos do bolso de seu sobretudo várias vezes.
— Sim está mais frio... — Ele dissera. Mas o sangue corria quente nas veias e agitou-se ainda mais quando se aproximou de Lívia e, de súbito, ajeitou uma mecha de seu cabelo que ousara esvoaçar. O olhar serio enquanto a mão deslizava pelo rosto de Lívia e segurava seu queixo. E quando o vento soprou de vez o orgulho junto com as folhas daquele inverno e o tempo jogou finalmente a promissória na cara de Lívia, ela permitiu que os lábios de Artur roçassem os seus levemente. O beijo foi longo e suave. Sem urgência. Sem ressentimentos, autenticando o amor que o tempo não apagara.
Lívia tomou então as mãos de Arthur e levou-o escada acima.
Naquela tarde, eles tomaram café e comeram pão de milho juntos relembrando velhos tempos. Depois se sentaram no velho sofá e assistiram a tarde cair e o vento frio entrar pela janela juntamente com as réstias de sol.
— Lívia, preciso te explicar o que aconteceu... Preciso me desculpar... — Arthur sentiu que precisava explicar coisas que ficaram sem serem ditas há um ano, mas Lívia colocou o dedo em seus lábios e disse:
— Sem justificativas, por favor. Agora eu te entendo. E sou eu quem deve pedir desculpas, pois não te ouvi naquele dia. —havia humildade na voz de Lívia.
—Naquele tempo eu estava muito machucada e, por orgulho, fiz muitas coisas erradas. Quero começar tudo de novo. Quero seguir em frente de um jeito novo. Se você ainda quiser... — havia súplica na voz de Lívia. Ela não queria perder mais tempo. Já havia perdido muito na vida por culpa de sentimentos tolos.
— Sim, eu quero. —Arthur respondeu e Lívia aninhou-se em seu colo no velho sofá da saleta. Dormiram abraçados com a música do vento falando de um novo tempo.
Arthur e Lívia se casaram no início de setembro na Igreja São João batista. A mesma Igreja, onde os pais de Lívia, um dia, também haviam selado seu amor, contrariando as convenções criadas por Sr. Lopes.
Lívia usava o mesmo vestido de noiva da mãe, de renda simples e o véu curto acima dos ombros. Beijou Arthur na saída da capela sob uma chuva de pétalas brancas jogadas pelos poucos amigos que foram testemunhas do enlace.
Depois fizeram uma curta viagem de dez dias pelas cidades históricas de Minas Gerais. Algumas tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e como Patrimônio Mundial da Humanidade, pela Unesco, como Ouro Preto com sua arquitetura barroca nas pontes, fontes, praças e Igrejas, dentre elas a de São Francisco de Assis, sem contar as ruas de pedras íngremes e sinuosas; e como Diamantina com suas construções do período colonial, igrejas como a de Nossa Senhora do Rosário e as casas de Chica da Silva e Juscelino Kubitschek; e como Congonhas com destaque para o Santuário do Senhor Bom Jesus de Matozinhos e seu complexo de arte visível, por exemplo, nas doze estátuas de profetas feitas em pedra-sabão por Aleijadinho.
Admirando, certa tarde esse conjunto arquitetônico do Santuário do Senhor Bom Jesus de Matozinhos, Lívia se vira para Artur.
—Sabe Arthur, às vezes fico refletindo sobre a arte e vejo que ela é um dom de Deus assim como a vida e não pode ser desperdiçada. Veja o Aleijadinho... Com a doença já agravada ele ainda criou os doze profetas.
— “A arte existe porque a vida não basta”. — Arthur disse em estado contemplativo.
—Essa frase... É de Ferreira Gullar. — Lívia olhou para Arthur.
—Sim... É... Sabe Lívia? É uma frase bem poética, eu diria. Com certeza revela a conexão da arte com o sentido da vida.
— Por que você quis vir aqui? —Lívia perguntou enquanto eles se aproximavam mais das escadas do adro da Igreja.
—Porque eu quis te dar esse presente e também me presentear. Por todo lugar que passamos respiramos arte. Percebe? A arte humaniza. Por isso que acho, assim como Gullar, que ela tem conexão com a vida.
—Obrigada pelo presente. — E ficando na ponta dos pés beijou o rosto de Arthur.
E Arthur segurando-a pela cintura levantou-a ao alto. Depois a desceu, beijou-lhe os lábios e disse:
—Obrigada por você existir e, assim como a arte, ter dado sentindo a minha vida.
Depois ambos deram as mãos e como crianças subiram correndo as escadas que ligavam ao adro da Igreja. E lá de cima, Lívia estendeu os braços para o céu e disse:
—Obrigada meu Deus. Agora sei que a glória é a reparação dos erros.
E então o vento agitou seus cabelos.
Quando voltaram da viagem, Lívia e Arthur ainda ficaram por algum tempo na casa da Rua Tonelero até que se cumprissem os protocolos para o seu tombamento como patrimônio histórico. Depois foram viver numa casa moderna reformada por Arthur com detalhes minimalistas e já pensando nos filhos que viriam.
Quanto à velha casa da Rua Tonelero onde Lívia vivera, fora restaurada e finalmente tombada como patrimônio histórico. Ela tornou-se também a sede de uma pequena biblioteca, dessas de bairro, em cujo acervo, não poderia faltar, todas as obras de Machado de Assis que pertenceram à mãe de Lívia.
Ela chegou à conclusão que as coisas acontecem porque tem que acontecer, embora pensemos que poderia ser diferente.
Todo ano quando chegava o inverno, Lívia e Arthur deixavam o carro em frente à antiga casa da Rua Tonelero, agora uma biblioteca, e caminhavam de mãos dadas até a padaria Laika para comprar pão de milho. Depois paravam sempre no mesmo lugar da calçada onde se conheceram e riam juntos da cena daquele dia: uma boina de tricô levada pelo vento e uma menina lutando para pegá-la. Depois Arthur ajeitava os cabelos de Lívia e lhe fazia uma reverência. O beijo acontecia sempre em frente ao velho portãozinho. Depois Lívia o abria e subia correndo os degraus de mármore branco. Logo depois descia com um romance de Machado de Assis nas mãos. Virara leitora assídua do escritor. Era uma forma de lembrar eternamente de sua mãe.
Nessas tardes de rituais relembrando o passado, o vento sempre os acompanhava, como que para se certificar se estavam juntos. Ora batendo no rosto de Arthur. Ora agitando os cabelos de Lívia. Ora se metendo entre ambos e sussurrando coisas aos seus ouvidos. Ora arrastando as folhas pelas ruas.
PARA OUVIR O CAPÍTULO 34 E EPÍLOGO DESSE ROMANCE NO YOUTUBE ACESSE O LINK ABAIXO:
https://www.youtube.com/watch?v=ACxwdZxWZY0