A tradição deve continuar
— Vó, pare de me puxar. Já estou aqui e estou te ouvindo – disse o rapaz em bom tom às costas de sua avó.
— Está mesmo? Não parecia até eu ir buscá-lo. O que pensou que estava fazendo? Já disse para não se misturar com os daquela tribo vendida. Todos são uns vendidos e não se devem confiar. Se a situação tem piorado é por causa de gente assim – o discurso da senhora, que abria a mata na frente do neto, era também uma repreensão aberta.
— Estava só observando, sem fazer nada demais. Também posso me refrescar um pouco, não há demarcações no rio.
— Demais fazem eles, arrancando a terra que é de todos à força pelos papéis dos homens de fora. Que eles têm com qualquer um de nós? Somos expulsos das matas que sempre foram nossas enquanto eles abrem caminho para os verdadeiros invasores que só querem saber de nos saquear.
— Eu não acho que seja totalmente assim. Quer dizer, não tem como aqueles que ainda moram por aqui venderem as suas terras para qualquer um de fora. Fosse assim e não teríamos qualquer vizinho. De qualquer maneira, parece até que mais gente vindo para cá.
— Já não falei que isso é um problema? Quem faz negócios com os de fora já não é dos nossos, não é de confiança. Vendem os dotes das próprias famílias e sua herança por um trocado sujo – cuspiu para o lado após dizer isso, e prosseguiu sem perder o ritmo – que só vale na cidade daqueles homens. E não ouse me desmentir – parou e ser virou para lhe apontar um dedo e mirar um olhar como o de uma seta.
O que posso fazer nesses casos? É normal querer saber. Às vezes fico curioso para ver quem são ou como vivem as outras pessoas próximas daqui. Estamos sempre rodando a mata, procurando locais sem espaços demarcados e tendo cuidado com as épocas e humores do rio para evitar acidentes e poder aproveitar o que se pode plantar. Aquele garoto, do outro lado do rio, parece ter uma idade próxima da minha, apesar de ser um tanto mirrado. Seria algum tipo de doença ou castigo?
Já fomos expulsos de um e outro lugar, sei que devo tomar cuidado e não falar com qualquer um. As ameças por aqui são sustentadas por homens armados, que hora vemos uniformizados, como se vestidos das cores da floresta os fizesse mais próximos dela, e tem horas que os vemos encapuzados e mais agitados que alguns dos animais da mata, esses brigam de graça ou tentam nos comprar com algo, mas têm medo da própria sombra, apesar de que é nas madrugadas que procuram resolver seus negócios, os do tipo que parecem assaltar a mata.
Quanto às palavras da minha velha avó, são as mesmas que recita como um canto todo santo dia. Eu sei dos meus deveres e responsabilidades. Sou filho do chefe da nossa tribo. Tribo que está mais para um grupo famílias, apensar de serem famílias velhas e grandes.
Minha avó é nossa anciã, a tradição viva de uma tribo maternal, ela cuida das mulheres e supervisiona as tarefas de todos, especialmente as minhas. Quer que eu seja um bom líder como o meu pai. Sou filho único, mas não sou mais velho que o caçula das outras famílias. Também quero que continuemos a existir, por isso tomo todas as tarefas que posso, para aprender e defender essa única forma de viver que conhecemos e na qual estou desde sempre.
Sei do pavor que eles têm sobre qualquer outra tribo ou pessoa de fora. Dizem que não dá para confiar e que se recebemos ajuda é como se disséssemos que precisamos de ajuda. Uma afronta para as pessoas que vivem na mata desde que nasceram e são sustentadas por ela. Acreditamos ser tão pŕoximos dele que mesmo depois de morrer sabemos que continuaremos a vagar por aqui.
Conhecemos este lado do rio e toda a sua mata, temos as nossas demarcações por aqui também. É estranho dizerem por onde podemos andar, como se algum espaço do mundo fosse proibido ao pé, mas já nos acostumando a isso pela nossa segurança. Para nós, demarcações deveriam servir apenas para uma coisa, dizer quais espaços são bons para estarmos em cada época do ano, sabemos para onde os animais vão e quando o rio está mais cheio ou vazio.
Não desacredito de qualquer palavra da minha avó e dos meus familiares. Já sofremos bastante com as reformas e demarcações dos outros. Muitos passaram a nos tratar como invasores de um tempo para cá sendo que estávamos aqui antes deles. Entendo a razão e os motivos para o ressentimento, mas gostaria de saber que outras opções temos. Isso sem negligenciar tudo isso no que acredito e tem me mantido bem e saudável.
Continua o sermão que, na verdade, não havia terminado:
— Ande logo e me escute, vou te contar novamente porque é tão importante que siga corretamente as suas obrigações e não fique por aí perdendo tempo ou espreitando.
— Mas de novo? Deve ser a quinta vez.
— E não é pra menos. Logo estará em idade para sair por si e ajudar em mais coisas a nossa aldeia. Vai se tornar um homem e ter a própria família. Depois de seu pai, você é quem deve seguir com a tradição.
— E de onde vai sair minha noiva? De alguma plantação? Sou o mais novo, sei bem das responsabilidades desde sempre e não precisa repetir história alguma. Já sei que "há muito tempo...".
— E, há muito tempo, Caiuá, temos nos dedicado às vozes antigas que sussurram à noite e habitam aqui assim como nós. Elas tem nos protegido e abençoado. Poderíamos ter morrido, mas não, estamos aqui, não importam os números. Há muito tempo outros deixaram de viver e habitar aqui. Muitos se venderam e foram para a cidade dos homens como propriedade deles. Aqui podemos viver e ser livres. A tradição deve continuar porque sem ela não somos nada e nem temos nada.
Prolongou o seu discurso tanto quanto pôde até que voltamos, mata adentro, para nossa aldeia, e fui jogado de volta à rotina. Não questiono a autoridade dos mais velhos, são mais sábios do que eu e se falam ou pensam assim é o que buscarei, pois são a minha referência e a história que conheço é a deles, apenas a deles. Tem um significado, um propósito para essas coisas, eu sei, e me manterei vivo com a tradição. Ela não tem braços, pernas, cabeça, boca ou coração. Eu tenho e por isso ela usa os meus. Vivo pela tradição, que me mantém, ela é por mim e eu sou por ela.