Do outro lado do rio

[Ipojuca] Hoje está quente e tenho que acompanhar os homens até o local onde faremos uma negociação. Nossa aldeia não é exatamente acessível então, quando há algo assim, precisamos ir até um local mais distante, muito depois das nossas plantações seguindo rio acima. Não vou sempre por conta da minha condição, mas tenho que comparecer vez ou outra. Só não desfaleço no meio do caminho pelas pausas nas quais posso ir ao rio para me refrescar e respirar.

Dessa vez, enquanto pego um pouco de água, vejo um rapaz do outro lado. Parece estar tomando alento assim como eu. Nada demais até então, apenas sentado, bebendo um pouco de água e olhando, assim como eu.

Pelo jeito que está vestido deve ser um desses que andam muito pela mata. As roupas são muito simples e estão bastante surradas. São de uma costura grossa e não parecem ter passado por alguma máquina.

Será que é desses que hora ou outra invadem as demarcações? É problemático não acharem que precisam de qualquer permissão para cruzar a terra dos outros, apesar de que não me importo tanto, isso se não causarem problemas ou pegarem as coisas que são nossas. A terra é de todos, mas admito que, nessas horas, aquelas ideias sobre “propriedade” até que têm serventia. Eu ficaria mais que bravo se não pudesse aproveitar do meu trabalho, ainda mais porque outro o tomou de mim. Eu sou um dos que trabalha com a terra também. Mas esse daí parece que só quer um pouco de paz e refresco, assim como eu.

Ouço um barulho. Parece que tem mais gente vindo. Alguém que parece estar com pressa e não se preocupa de ser visto. Sai de trás do rapaz uma senhora, que para minha surpresa o puxa até que se levante. Está falando bastante com ele, está fazendo muitos gestos e parece brigar. Deixamos de nos entreolhar e ele dá atenção à senhora. Se o veio buscar deve ser uma cuidadora ou mesmo da família. Até tentou retrucar, mas se deu por vencido. Agora foi com ela.

Ouvi dizer que outras tribos, assim como a nossa, estavam compartilhando seus bens com pessoas de cidades maiores e mais distantes das que temos por aqui. Também ouvi que algumas mantinham distância, tanto de outras tribos e aldeias quanto daqueles fedorentos caminhões ou de qualquer estranho. Me pergunto se aquele garoto não era de uma comunidade assim. Não imagino como é viver assim, tão desgarrado e à margem do contato com outras pessoas. Acho que estaria bem na minha própria comunidade, mas reconheço que tem coisas que não seriam tão boas assim que não fossem essas trocas e negociações que fazemos.

Alguns temem os avanços, a tecnologia e a comunicação. Há esse medo de perder a cultura e a tradição que eles vêm mantendo há gerações. Para mim, só parece medo mesmo, medo do novo e da mudança. Mas entendo como se sentem. Não é como se quisesse mudar tudo em relação ao meu modo de viver. É confortável não mudar. Outros não veem o menor problema em compartilhar e vender parte de sua lavoura, frutas, verduras, ervas e até alguns animais da mata.

Já vi até alguns jovens irem junto dos caminhões. Os de fora sempre parecem se gabar também, eles dizem que gostam daqui porque conseguem muitas boas "commodities", seja lá o que isso for. Acho que depois de descobrirem o que é isso aqueles jovens quiseram virar “commodities” também. Tenho curiosidade de saber o que é, mas nem tanto.

Infelizmente parece que o meu tempo também acabou. Meu irmão me acha e sem cumprimentos apenas se comunica com um bom tapa no ombro. Que bom que não fui arrastado como o outro, ao menos isso. Ele me pergunta o que estou fazendo. Respondo como de costume, naquilo em que os homens são naturalmente bons, "fazendo nada".

Eles sabem, mas ter noção não é a mesma coisa que sentir esse cansaço que quase me carrega. Não vou dizer que sou o homem mais motivado do mundo, esse seria o meu irmão, Ubiraci, saudável e forte, disposto ao trabalho e bem localizado no caminho que um bom homem deve estar. Também tem aprendido a conversar com esses homens da cidade, mas não se arrisca ainda a tomar carona até uma delas para ver como são. Como eu não serviria nem para estar à sombra dele, prefiro me manter à margem, como estava, dentro do meu esforço e possibilidades. É uma caminhada longa, mas já estamos chegando no ponto marcado para ver o que podemos conseguir comprar ou vender hoje.

Mesmo mancando também sou homem, tenho meu senso e orgulho. Tendo começado não deixo algo de lado até terminar. Mas não é nada mal ter gente para dar um empurrãozinho. É muito bom ser escalado para participar dessas atividades e conhecer melhor esse mundo que é o nosso, assim posso participar dele mais plenamente, ainda que em doses. Não é como se eu pudesse acompanhar o ritmo deles o tempo todo por conta dessa minha perna – e estar com as mulheres na lavoura tem lá suas vantagens. Eles tentam ser bons, do jeito deles, mas sei que acabo sendo um peso para quem tem pressa e também tem que caminhar debaixo desse sol forte. Por mais que meu irmão tente me animar, prefiro estar no meu canto, mas sei que vivendo em uma comunidade como a nossa é bem improvável ou até impossível. Em nossa comunidade quem não participa ou trabalha também não come, não casa, não vive.

A tradição deve continuar

— Vó, pare de me puxar. Já estou aqui e estou te ouvindo – disse o rapaz em bom tom às costas de sua avó.

— Está mesmo? Não parecia até eu ir buscá-lo. O que pensou que estava fazendo? Já disse para não se misturar com os daquela tribo vendida. Todos são uns vendidos e não se devem confiar. Se a situação tem piorado é por causa de gente assim – o discurso da senhora, que abria a mata na frente do neto, era também uma repreensão aberta.

— Estava só observando, sem fazer nada demais. Também posso me refrescar um pouco, não há demarcações no rio.

— Demais fazem eles, arrancando a terra que é de todos à força pelos papéis dos homens de fora. Que eles têm com qualquer um de nós? Somos expulsos das matas que sempre foram nossas enquanto eles abrem caminho para os verdadeiros invasores que só querem saber de nos saquear.

— Eu não acho que seja totalmente assim. Quer dizer, não tem como aqueles que ainda moram por aqui venderem as suas terras para qualquer um de fora. Fosse assim e não teríamos qualquer vizinho. De qualquer maneira, parece até que mais gente vindo para cá.

— Já não falei que isso é um problema? Quem faz negócios com os de fora já não é dos nossos, não é de confiança. Vendem os dotes das próprias famílias e sua herança por um trocado sujo – cuspiu para o lado após dizer isso, e prosseguiu sem perder o ritmo – que só vale na cidade daqueles homens. E não ouse me desmentir – parou e ser virou para lhe apontar um dedo e mirar um olhar como o de uma seta.

O que posso fazer nesses casos? É normal querer saber. Às vezes fico curioso para ver quem são ou como vivem as outras pessoas próximas daqui. Estamos sempre rodando a mata, procurando locais sem espaços demarcados e tendo cuidado com as épocas e humores do rio para evitar acidentes e poder aproveitar o que se pode plantar. Aquele garoto, do outro lado do rio, parece ter uma idade próxima da minha, apesar de ser um tanto mirrado. Seria algum tipo de doença ou castigo?

Já fomos expulsos de um e outro lugar, sei que devo tomar cuidado e não falar com qualquer um. As ameças por aqui são sustentadas por homens armados, que hora vemos uniformizados, como se vestidos das cores da floresta os fizesse mais próximos dela, e tem horas que os vemos encapuzados e mais agitados que alguns dos animais da mata, esses brigam de graça ou tentam nos comprar com algo, mas têm medo da própria sombra, apesar de que é nas madrugadas que procuram resolver seus negócios, os do tipo que parecem assaltar a mata.

Quanto às palavras da minha velha avó, são as mesmas que recita como um canto todo santo dia. Eu sei dos meus deveres e responsabilidades. Sou filho do chefe da nossa tribo. Tribo que está mais para um grupo famílias, apensar de serem famílias velhas e grandes.

Minha avó é nossa anciã, a tradição viva de uma tribo maternal, ela cuida das mulheres e supervisiona as tarefas de todos, especialmente as minhas. Quer que eu seja um bom líder como o meu pai. Sou filho único, mas não sou mais velho que o caçula das outras famílias. Também quero que continuemos a existir, por isso tomo todas as tarefas que posso, para aprender e defender essa única forma de viver que conhecemos e na qual estou desde sempre.

Sei do pavor que eles têm sobre qualquer outra tribo ou pessoa de fora. Dizem que não dá para confiar e que se recebemos ajuda é como se disséssemos que precisamos de ajuda. Uma afronta para as pessoas que vivem na mata desde que nasceram e são sustentadas por ela. Acreditamos ser tão pŕoximos dele que mesmo depois de morrer sabemos que continuaremos a vagar por aqui.

Conhecemos este lado do rio e toda a sua mata, temos as nossas demarcações por aqui também. É estranho dizerem por onde podemos andar, como se algum espaço do mundo fosse proibido ao pé, mas já nos acostumando a isso pela nossa segurança. Para nós, demarcações deveriam servir apenas para uma coisa, dizer quais espaços são bons para estarmos em cada época do ano, sabemos para onde os animais vão e quando o rio está mais cheio ou vazio.

Não desacredito de qualquer palavra da minha avó e dos meus familiares. Já sofremos bastante com as reformas e demarcações dos outros. Muitos passaram a nos tratar como invasores de um tempo para cá sendo que estávamos aqui antes deles. Entendo a razão e os motivos para o ressentimento, mas gostaria de saber que outras opções temos. Isso sem negligenciar tudo isso no que acredito e tem me mantido bem e saudável.

Continua o sermão que, na verdade, não havia terminado:

— Ande logo e me escute, vou te contar novamente porque é tão importante que siga corretamente as suas obrigações e não fique por aí perdendo tempo ou espreitando.

— Mas de novo? Deve ser a quinta vez.

— E não é pra menos. Logo estará em idade para sair por si e ajudar em mais coisas a nossa aldeia. Vai se tornar um homem e ter a própria família. Depois de seu pai, você é quem deve seguir com a tradição.

— E de onde vai sair minha noiva? De alguma plantação? Sou o mais novo, sei bem das responsabilidades desde sempre e não precisa repetir história alguma. Já sei que "há muito tempo...".

— E, há muito tempo, Caiuá, temos nos dedicado às vozes antigas que sussurram à noite e habitam aqui assim como nós. Elas tem nos protegido e abençoado. Poderíamos ter morrido, mas não, estamos aqui, não importam os números. Há muito tempo outros deixaram de viver e habitar aqui. Muitos se venderam e foram para a cidade dos homens como propriedade deles. Aqui podemos viver e ser livres. A tradição deve continuar porque sem ela não somos nada e nem temos nada.

Prolongou o seu discurso tanto quanto pôde até que voltamos, mata adentro, para nossa aldeia, e fui jogado de volta à rotina. Não questiono a autoridade dos mais velhos, são mais sábios do que eu e se falam ou pensam assim é o que buscarei, pois são a minha referência e a história que conheço é a deles, apenas a deles. Tem um significado, um propósito para essas coisas, eu sei, e me manterei vivo com a tradição. Ela não tem braços, pernas, cabeça, boca ou coração. Eu tenho e por isso ela usa os meus. Vivo pela tradição, que me mantém, ela é por mim e eu sou por ela.

Gabriel L Amorim
Enviado por Gabriel L Amorim em 13/03/2024
Código do texto: T8019008
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