Ipojuca

Cada um toma o rumo do seu dever após acordar. Os homens constroem, caçam, negociam e alguns, por conta da necessidade, também ajudam a plantar, coser e talhar, digo “por necessidade” por serem as mulheres a encabeçar as atividades de lavoura e outras mais instrumentais. As crianças as acompanham até a idade na qual já podem participar das atividades dos adultos fazendo algo por si. Elas ajudam em quase todas as tarefas enquanto não podem fazer algo por si, observam ou prestam algum auxílio para aprender. Assim, quando mais velhos, os meninos já estão preparados para ir junto dos seus pais e as meninas já sabem fazer o que precisam também. Nossos velhos ou anciãos, como preferir, apoiam todas as atividades, mas se dedicam às que conhecem bem. Também dão conselhos e ensinam, sendo que sua opinião é a principal quando há discussões e precisamos decidir sobre algo que envolve a todos.

Em nossa comunidade temos tanta sorte quanto trabalho, como dizem. Bem localizados, próximos de um rio e só a algumas dezenas de quilômetros de uma cidadezinha. Nos sentimos seguros e progredimos. Temos as leis da comunidade e as de "órgãos". Gente de fora da nossa convivência e hábitos, mas que nos vigia de uma forma que até parece estar aqui, como parte do nosso corpo. Eles até nos ajudam também, vez ou outra, enviando comida e medicamentos por barcos, principalmente quando pensam ter alguma epidemia ou gente doente, apesar de que, isso me confundo um tanto quanto às suas intenções. São eles que aparecem relatando essas coisas entre os tais atos de caridade e o medo de alguma contaminação e se surpreendem quando mostramos que não houve algo parecido por aqui.

Recebemos muita coisa gratuita, aquelas que taxam como "higiênico" ou "civilizado". A que mais deu o que falar até o momento foi a tal da "camisinha". Que não é uma "camisa pequena", como muitos pensaram. É para evitar engravidar ou contrair doenças, dizem. Um dos nossos, depois de usar, achou ter sido abençoado ao ver seu membro crescer e quase dobrar de tamanho. Isso até que vieram as dores, a coceira, os machucados e o corrimento. Nojo! Descobrimos depois que havia inchado por conta de uma alergia, coisa que até então nunca tinha ocorrido igual por aqui. Aprendemos. Como toda novidade traz surpresas, muitos preferem esperar alguém usar antes para ver no que dá.

— Juca – chamou, meu irmão, pelo apelido –, vamos logo, se apronte! Ninguém consegue se atrasar tantas vezes assim.

— Me deixe, Ubiraci. Quem parece estar competindo com o sol é você. Mal saíram as primeiras luzes. O céu nem tomou cor ainda.

— Se responder assim toda vez que alguém te fizer uma gentileza nunca vai conseguir casar – saiu de nossa choupana rindo, após me estapear o ombro.

— Já estou indo, até porque sua comida não se colhe sozinha. Fosse assim eu mesmo as mandaria ir andando para se venderem pros homens de fora. Também não suporto aqueles caminhões velhos!

— Ande logo ou vai bater a cota das reclamações logo pela manhã. Os outros já saíram e só estamos nós aqui. Não serei responsável por você pra sempre! – apontou os olhos de cima, me comparando a uma criança.

E assim seguimos no nosso dia. Tomando caminho por uma trilha que leva a um e outro campo onde estão os hectares que usamos para as plantações. Nelas, vez ou outra, encontramos um animal preguiçoso dormindo após a refeição noturna. Não nos importa muito, ao menos quando temos para compartilhar, pois o que vem dessa grande natureza é de todos nós, e, dependendo do animal, o devolvemos a ela para seguir seu ciclo natrual na cadeia alimentar ou o acrescentamos a nossa.

É engraçado lembrar das palestras e avisos daqueles “órgãos” – acho que nunca me acostumarei com essa palavra, é estranho pensar em um órgão fora do corpo. Não é como se fizessem parte do meu corpo. Tentam ensinar a todos sobre ecologia, o que entendo, mas moramos aqui e chamamos isso apenas de “viver a vida”. Nas suas campanhas contra o desmatamento, a caça e a preservação falam de coisas como o “direito da propriedade”.

Vivemos tento de tudo compartilhado então o que aprendemos com isso foi a questão de que podemos ter algo que seja só nosso. Casais pertencem um ao outro e filhos são de responsabilidade dos pais, mas se houver necessidade cuidamos uns dos outros. E no caso de uma ama de leite? Perguntamos sobre isso por ser normal para nós que um bebê conheça a todos e saiba que comida não lhe faltará. Aliás, aqui, ninguém nunca passou fome. A resposta foi vaga, falaram ainda do “direito do corpo” e deixaram de lado os direitos da fome. Como ainda estamos tentando entender como eles veem as coisas, também deixamos o assunto de lado.

Enquanto fico junto a um grupo de mulheres em um dos hectares, Ubiraci segue com os outros homens mata adentro. Para eles há mais opções, não só por aqui, mas do outro lado do rio. Como dependemos de certas plantas, pelos e couros para comercializar, é importante que não deixemos tudo nas mãos de alguma outra gente que, sendo concorrente, acabe por tomar e consumir toda a matéria prima.

Recentemente temos tido algo assim, mas como temos acordos com esses “órgãos”, seguimos uma série de regras em troca de benefícios. Ao nosso redor o espaço é demarcado e ainda que algumas linhas sejam apenas imaginárias é impressionante ver que a maioria das pessoas as respeitam. Já teríamos tratado da questão diretamente, mas parece que não são de conversa apesar de tudo. Como estão estão só de passagem, menos mal.

Apesar de que falar em concorrência por aqui seria mais pelo fato de sabermos que o vegetal e o animal têm limites e épocas até que a terra reponha as suas “propriedades”. Ela sim tem “direitos” e “propriedades”, é dela que vem o trabalho e o descanso. Falamos em cuidar de produções, mas, no final, o que temos a fazer é plantar e colher na hora certa, e não atrapalhar as épocas dos animais.

— Como vai o trabalho, Ipojuca? – perguntou-me uma das colhedoras.

— Já tem algum tempo, então posso dizer que me acostumei ao trabalho – já não era problema para mim ficar agachado sobre uma perna ou ter de me levantar e caminhar por um tempo para plantar e colher.

— Apesar de não saímos para caçar como os homens, não quer dizer que para cá não precisamos de muito vigor também. Estava um pouco preocupada com você no início, mas já até pegou alguma cor e não faz mais pausas.

— Sim, desde sempre, vocês sabem, tive que compensar por essa minha perna que é menor que a outra, e como é seca, não posso por muito peso – e, em pensamentos, também agradeço por não precisar trabalhar como outros. Prefiro assim, aqui, podendo ter expectativas sobre o que faço e podendo escapar do sol quando preciso.

— É muito bom ver que você e o seu irmão já são capazes de nos ajudar e não poupam esforços para isso. Daqui a pouco será tempo de algumas celebrações. Acho que os dois devem arranjar bons pares – me parecendo bem despretensiosa ao dizer isso.

— É o que espero – e, penso, isso se eu arranjar um par que não ligue de eu não poder dançar.

Após as extensas manhãs almoçamos e temos as tardes livres, livres para mais atividades. Aqui, entre nós, o ócio não serve como desculpa para nos deitarmos na pastagem e sermos parte do cenário. Algo vai acabar nos mordendo. Como sou bom com artesanato e até de cozinha, ajudo bastante com outros serviços e nas festividades, mesmo não participando dos eventos principais.

Não é uma vida ruim e se eu reclamo é para mim mesmo. Que bom que entendem essa minha condição. Talvez a infância tenha sido a fase mais complicada até o momento – muitas vezes era apenas eu, observando os outros –, mas agora tenho um espaço. Mesmo o meu irmão é muito compreensivo, apesar de que seu humor me é demais algumas vezes. Lembro de quando finalmente começamos a trabalhar juntos consertando as choupanas, coisa comum de todos fazerem de tempos em tempos por necessidade, para mudar algo ou preparar para as festas e celebrações, ele fazendo o acabamento, e eu cuidando dos materiais que precisa.

É em nossas atividades que trabalhamos a convivência com todos. Por isso é importante participar. Já não somos tão pequenos em números então é importante estar em contato com os outros. Gostaria de descansar mais e aproveitar as coisas no meu ritmo, mas é assim que se vive quando não se vive só.

Gabriel L Amorim
Enviado por Gabriel L Amorim em 13/03/2024
Código do texto: T8018929
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