FOI O VENTO

 

POR: Sônia Machado

 

Capítulo 30

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QUANDO SETEMBRO CHEGOU, LÍVIA AINDA VIVIA SEU drama financeiro e nem havia conseguido ainda dinheiro suficiente para pagar o aluguel de agosto.  Não conseguira emprego e se virava com as poucas aulas de arte que dava. Teve receio de ser despejada da casa, mas não perdeu as esperanças.  Precisava pedir um tempo na Imobiliária pelo menos até encontrar um lugar pequeno para morar.

Em meio a esse caos, Lívia encontrou ânimo para cuidar da roseira do jardim. Podou-a em um dia de céu nublado em meados de agosto. A chuva veio leve e passageira, mas o suficiente para a roseira brotar.

E, para quem não queria viver de passado, se viu, numa manhã já de setembro, colhendo a primeira rosa cor-de-rosa e solitária colocando-a num vaso na pequena saleta. 

Lívia a vira de manhã, logo que abriu a janela e desceu correndo a escada para saudá-la.

— Essa é para você mamãe. — E beijou as pétalas aveludadas como se beijasse o rosto de sua mãe.

Depois, movida por um impulso que ela não soube explicar, procurou pelas chaves do quarto de sua mãe e entrou abrindo as janelas e deixando o ar de setembro entrar. Varreu o chão e trocou a colcha da cama. Não se deixou abater pelas recordações nem mesmo quando esvaziou o guarda-roupa embalando os pertences da mãe para doação.  Não tinha sentido guardar suas roupas quando existiam tantas pessoas carentes de algo para vestir.

Movida também por aquele impulso, abriu a última gaveta da cômoda e tirou de lá o pequeno baú de sua mãe e o abriu. As mãos procuraram pela velha fotografia dos avós. Naquela mesma tarde saiu e comprou um porta-retratos onde a colocou, expondo-a na estante juntamente com a foto de seus pais e ela.  Passou minutos e minutos procurando melhores ângulos para as fotografias e, às vezes se afastava para comtemplar o resultado. Era sua história e ela não queria que a dor ou o orgulho matassem essa história.

De súbito, Lívia sentiu vontade de procurar o avô. Ela, enfim, estava pronta para aceitá-lo em sua vida. Já o havia perdoado há muito tempo. Não fazia sentido ficar adiando mais.  Só tinha receio que ele pensasse ser ela uma interesseira, afinal passava por momentos financeiros difíceis.  Decidiu que o procuraria na manhã seguinte. O avô não precisaria saber das suas dificuldades. 

Lívia sentou-se na poltrona xadrez e fechou os olhos imaginando o avô e as mil coisas que fariam juntos. Tomar café da tarde. Ler velhos livros como quando fazia com sua mãe e depois comentar trechos lidos. Lívia também queria caminhar devagar pelas ruas com seu avô e se sentar em qualquer praça tomando sorvete ou comendo chocolates. Ela queria ouvir suas histórias, fossem elas quais fossem.

Lívia ainda sonhava acordada com tudo que queria fazer com seu avô, quando bateram à porta.

—Quem será? —Lívia assustou-se e logo lhe veio à mente que seu aluguel estava atrasado. Trêmula abriu a porta.

— Sou o motorista do Sr. Lopes. Ele quer vê-la. — O homem que estava no alpendre foi logo dizendo e entregando-lhe um bilhete  que dizia:

—“Preciso te ver menina. Antes que seja tarde. Seu avô”.

—Eu irei amanhã sim. Diga-lhe que me espere.

 

 

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Na tarde daquele mesmo dia, bateram novamente à porta e, novamente com o coração aos saltos, Lívia foi atender.  Era o mesmo homem de manhã. Ele lhe apresentou um envelope, cujo remetente era o advogado Dr. Antônio Fonseca. O homem aguardou que ela o abrisse. Lívia abriu o envelope, e nele, Dr. Fonseca, numa nota rápida lhe informava o falecimento do avô.  A última frase dizia: “Caso queira comparecer ao funeral, o motorista de seu avô a acompanhará”.

Por um instante, pareceu que o chão fugia debaixo dos pés de Lívia e ela, sem acreditar levantou os olhos para o homem que a aguardava. Por um instante suas recordações a levaram ao dia em que procurara o avô.

—Preciso de um tempo... — Lívia havia dito para o avô naquele dia.

—Só que eu não tenho muito tempo... — O avô havia lhe respondido. Será que ele estava doente e já sabia que não duraria muito?

—Ele não me esperou... — Uma lágrima rolou dos olhos de Lívia. Lágrima de dor de arrependimento — Decidi tarde demais. — admitiu diante do olhar do homem que não entendia nada do que ela estava falando.

—A Senhorita deseja ir ao funeral? — O homem que era o motorista do Sr. Lopes lhe perguntou e Lívia levantou os olhos enxugando as lágrimas. Sim. Ela precisava ver o avô a última vez. Ainda que fosse sem vida. Precisava dizer a ele que o perdoava. Que havia decidido, mas ele não quis esperar.

— Sim...  Eu irei. – Lívia respondeu.

Lívia vestiu-se de luto e o oficial a levou até onde o avô estava sendo velado. Um salão suntuoso, embora com poucas pessoas.  Sr. Lopes não tinha muitos amigos. Os que imaginava ter, ostentavam apenas jogo de interesses capitalistas. Havia os funcionários da Imobiliária e o Dr. Fonseca que, assim que a viu entrar com o motorista, veio-lhe ao encontro.

—Senhorita Lívia? Meus sentimentos— disse o advogado apertando-lhe as mãos. — Sou o advogado de seu avô.

Lívia retribuiu o cumprimento e depois caminhou lentamente até onde estava o avô.  À cabeceira da urna, uma enorme coroa de crisântemos pareceu-lhe tão estranha e descolada uma vez que, as flores, representavam simplicidade, vida completa e perfeição. Tudo que seu avô não tinha. Pelo menos era o que Lívia imaginava depois de conhecer sua história através da mãe e dele mesmo. Ela se aproximou mais e leu: “Nossa equipe sente muito sua perda” (Imobiliária Lopes). Talvez para seus funcionários, o avô tivesse sido tudo que as flores simbolizavam. Quem era ela para julgar essa última homenagem, ainda que lhe parecesse hipocrisia? 

Lívia desviou os olhos dos crisântemos amarelos que exalavam um perfume penetrante de morte e de despedida e fixou sua atenção no corpo inerte do avô dentro de uma urna luxuosa de madeira bordada com arabescos em alto relevo. Cuidados do advogado Dr. Fonseca com certeza.

Seu avô parecia tão pequeno lá dentro sob um tecido branco transparente. Tão frágil e indefeso com as mãos sobrepostas. Ela sentiu pena do avô. Apesar das posses que tinha, vivera praticamente sozinho. Ele havia afastado até mesmo os fantasmas do passado.

— Estranho como a morte reduz um corpo a nada. Não importa o que ele tenha sido. —Lívia pensou ao mesmo tempo em que se lembrava da própria mãe que havia sido vítima há pouco mais de um mês.

Indecisa e com receio de estar parecendo hipócrita, Lívia não se conteve, levantou a mão e tocou o rosto do avô sentindo a frieza de sua pele.

—Porque não me esperou vovô? — Ela pensou consigo mesmo, se permitindo pronunciar, ainda que em pensamento, esse nome mágico para os netos. Mas de repente era estranho ela estar ali diante de um avô sem vida e que ela sequer conhecera direito. Que lembranças ela teria dele senão a primeira em que se viram e que ela, sabendo da sua idade avançada, simplesmente pedira um tempo? E que lembranças teria também senão dessa imagem fúnebre?

—Não cometa os mesmos erros de sua família. — Lívia se lembrou do pedido da mãe. No entanto, ela adiou a reparação do erro até que o tempo se esgotou. E agora seu avô tinha partido. Ela não tinha o direito de ter feito isso.

—Meu avô o senhor sabe que te perdoei, não sabe? — disse em pensamento. — Te perdoei desde aquele dia. Só não tive coragem de pular em teus braços porque sou tão tola quanto o senhor foi. Tola e orgulhosa.

Uma lágrima solitária rolou por sua face. Lívia a enxugou discretamente, pois sabia que era alvo dos olhares de várias pessoas naquele recinto fúnebre. Poderiam, inclusive, estar tirando conclusões precipitadas sobre ela e sua presença ali. Lívia pouco se importava com isso, mas queria ser o mais discreta possível. Dessa forma, assim que tocou o rosto do avô e alisou seus cabelos brancos, retirou imediatamente a mão, enquanto em pensamento dizia:

— Vovô, agora, sou eu quem te pede perdão. Descanse em paz— E virou-se para sair. Que sentido fazia ficar ali? O Avô já tinha partido e ela precisava seguir em frente sozinha.

 

 

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Quando Lívia já estava próxima à porta de saída Dr. Fonseca a alcançou.

— Senhorita Lívia...

—Sim... — Ela se virou.

Dr. Fonseca pigarreou e disse:

—Não vai ficar para o enterro? Não está se sentindo bem? —Ele parecia preocupado com ela, pois estivera observando-a desde que chegara.

— Não... Não estou bem. —Ela confessou fitando o advogado obeso. — Como queria que eu estivesse me sentindo? Quando descubro que meu avô está vivo, ele morre logo em seguida.

— Sinto muito... — Dr. Fonseca ensaiou um ar triste o que não combinava com ele.

— Não sente tanto quanto eu garanto-lhe. —Lívia tinha o olhar num ponto qualquer daquele salão lúgubre. —Meu avó se escondeu de minha família a vida toda. Na verdade, ele renegou minha família e quando o encontro, ele não me dá o tempo que pedi. Entende como me sinto?

—Sim... Entendo você menina. Mas fugir não vai adiantar nada. Só vai piorar a sua consciência. — Dr. Fonseca falou olhando nos olhos de Lívia.

— Sabe de uma coisa? — Lívia também olhou nos olhos do advogado. —O Senhor está certo. Eu não queria me envolver já que para meu avô eu nem existia. Mas agora tenho um pedido a fazer.

—Mas claro menina. Fale.

—Quero unir minha família. Ainda que depois de mortos.

— Unir? Como assim? — Dr. Fonseca fitou o olhar questionador em Lívia.

—Não sei se é possível, mas quero trasladar os corpos de meu pai e minha mãe para o jazigo de meu avô. — Lívia de repente se sentiu leve diante dessa ideia. Sua família separada em vida se uniria na morte. E pelo menos seus restos mortais viveriam juntos eternamente.

— De fato não é tão simples. É preciso de uma autorização judicial e argumentos convincentes. — Dr. Fonseca respondeu levantando as sobrancelhas.

—Tenho certeza de que o Senhor conseguirá fazer isso. Preciso reparar os erros do passado. Isso é questão de honra para mim entende?

— Isso não é um argumento convincente... — Dr. Fonseca fitou Lívia enquanto alisava o cavanhaque. — Imagine se todas as pessoas, por motivos pessoais, resolvessem juntar as famílias num só jazigo.

—O Senhor está dificultando as coisas... — Lívia encarou Dr. Fonseca com um olhar duro.

— Não. Não estou. Estou sendo realista. Não podemos esquecer que a mudança de jazigo, no fundo, pode parecer para o juiz uma mera comodidade para a família. No caso você.

 —É... Talvez... — Lívia concordou. —Mas o Senhor sabe que não é uma comodidade o que pretendo e tenho certeza que saberá tornar meus argumentos convincentes perante a justiça.

— Menina determinada. Igual o avô. Dr. Fonseca falou alisando novamente o cavanhaque. —Está certo. Vou fazer o possível.

— E o impossível. Quero minha família em um só jazigo. Sei que o que importa é a alma e esta já está junto de Deus. Mas mesmo assim preciso fazer isso. Só assim seguirei a vida em paz. — Lívia completou.

 

 

 

CONTINUA...

 


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