Dona Amália Uma Sonhadora

A terra vermelha e solta, forma redemoinhos aos ventos torrenciais

na época do ano em que a cidade ganha um pouco do

clima da capital, frio cortante para os habitantes da cidade.

As casas simples ficam situadas no corredor boiadeiro, por onde

passam as comitivas conduzindo volumosos rebanhos de bois em direção

ao frigorífico.

Dona Amália grita:

– Filhos, não saiam. A boiada pode passar em cima de vocês.

O sotaque tipicamente interiorano se repetia e as quatro crianças

assistiam, do alpendre da casa, os bois a passar, levantando densa poeira

que, com a precária iluminação da época, fazia com que quase não se

conseguisse enxergar os condutores, porém o som dos berrantes aos ouvidos

soava alto e estridente.

Clamiro, o mais velho, ajudava a cuidar dos outros três irmãos:

– Celina, Celino, Cimara, saiam do quintal e voltem para o alpendre!

– A voz vinha da porta da sala, que dava para o alpendre de frente para a

rua, de onde Clamiro ralhava com seus irmãos.

Dona Amália, de olhar sereno, porém firme, cabelos pretos, pele

morena queimada do sol, olhos verdes, ainda sustentava a beleza de sua

juventude apesar dos seus trinta e cinco anos que não foram nada fáceis.

Por alguns minutos, ela se absorveu em seus pensamentos, deixando

de ouvir o barulho dos bois no corredor.

- Mamãe!

- O que foi Celina? – Perguntou dona Amália.

- Quero crescer e ser rica! – Disse a menina.

- Tá bom, então estude muito. Agora, vá deitar e dormir que já é tarde.

As palavras da mãe pareciam ter sido gravadas na memória daquela

criança.

A mais rebelde dos quatro estava calma naquele dia e obedeceu.

Deitou-se e logo pegou no sono. Aos poucos, os quatro foram se deitando

e dormindo.

Dona Amália caminhou até o quarto onde as crianças dormiam, verificou

se estavam todos cobertos, alisou os cabelos do mais velho, beijou

a caçula Cimara, deitou-se na cama simples e adormeceu, pois a rotina do

dia a dia não era das mais fáceis.

O marido era um protagonista na condução do gado e um coadjuvante

na companhia dos filhos. Em um caminhão, em algum lugar do Brasil, ele

se encontrava conduzindo a carga valiosa dos tempos dos anos 1960.

Fechado, de convivência difícil, ele optou pela estrada. Eram pouquíssimos

os instantes que passava com a família; a maior parte de seus

dias era passada na estrada, viajando, e quando estava em casa, as coisas

não eram nada fáceis para dona Amália. Seu temperamento era forte e,

muitas vezes, chegava próximo de agredir a esposa.

O ronco do motor e a buzina estridente, ainda um pouco distantes,

era o suficiente para que o alvoroço se formasse dentro de casa.

Cimara, a caçula das duas mulheres, mais carinhosa, correu gritando:

– Papai chegou, papai chegou! – Demonstrando a carência em torno

da figura masculina que as crianças certamente sentiam. Ela se pôs

próxima ao portão, seguida por Celina e Celino, que correram logo atrás.

Todos ali aguardavam o “chefe da família”; as crianças gritavam e pulavam

sorrindo que papai chegou.

Dona Amália se pôs na porta da sala a esperar. Não havia dúvidas:

as crianças conheciam a buzina do caminhão do pai.

Ao entrar e fazer um bocado de festa com as crianças, bem como

agradá-las da sua forma, disse para a esposa dona Amália, após beija-la:

– Amanhã de manhã, saio de viagem novamente.

Não era uma novidade para a senhora; as estadias em casa eram

bem rápidas.

Naquela noite, uma conversa sem muita importância causou uma

grande discussão entre seu Benito e dona Amália. O o gênio dele era

mesmo assim: uma palavra poderia causar grandes brigas, com gritos

e ameaças por parte dele. Além disto, foram várias as vezes que ele foi

flagrado com outras mulheres em ato consolidado de adultério.

Naquela noite, seu Benito ficou tão nervoso que chegou a tentar

agredir a esposa. Quebrou todos os móveis da casa e foi viajar no outro

dia de manhã.

Era o fim do casamento, que havia durado vinte anos. Seu Benito

partiu e dona Amália ficou ali; estava sozinha com seus quatro filhos.

Não é necessário dizer que em tudo, inclusive no aspecto financeiro,

a família ia de mal a pior. Não raro as crianças irem até a casa da vizinha

a pedirem um pouco de arroz para cozinhar. Dona Amália e os dois filhos

mais velhos, Clamiro e Celino, iam para a roça apanhar algodão, muitas

vezes sem levar a marmita para o almoço, afinal, não tinha comida.

Não eram raros, também, os jantares de fubá com água, ou seja,

um mingau. Porém, era o que se podia comprar com o mirrado dinheiro

trocado das fichas de “pau de arara” recebidas em ganhos nas roças de

algodão; as fichas eram pagas todos os dias e, aos sábados, formavam-se

grandes filas para trocá-las por dinheiro.

Os anos foram se passando e as crianças foram crescendo. Clamiro

vendia sorvetes na rua para ajudar na compra dos alimentos.

Dona Amália não tinha muito o que reclamar dos filhos. Todos eram

honestos. Celino era um pouco rebelde; Celina insistia em sair de casa e

buscar uma vida melhor, como dizia quando criança, e partiu para a capital

em busca de sua “riqueza” prometida em tempos de pequena. Ela

sonhava alto e para a mãe aquilo não era bom.

Dona Amália muitas vezes se perdia em pensamentos, imaginando

se seria possível ver seus filhos terem melhor sorte na vida. Não raras vezes,

caía em pessimismo, achando que uma mulher sozinha não poderia

ser capaz de tamanha façanha, não nos anos 1960 em que vivia, quando

aquela que se desquitava era vista quase como uma prostituta, sendo

“falada” e muitas vezes impedida de ter amizades com mulheres casadas.

A “mistura” mais utilizada era a cambuquira, aquela flor de abóbora

que, naquela época, nascia pelos terrenos baldios e as crianças saíam

pegando os brotos com as flores, que eram cozidos para se alimentarem.

Dona Amália sofria. Não aguentava tanta pobreza, tanto sofrimento, mas

seguia firme ao lado dos filhos, a quem jamais abandonaria.

O tempo passou e a filha mais velha, Celina, sozinha na capital, formou-

se enfermeira e tornou-se uma profissional respeitada. Ela continuava

seus estudos para se tornar psicóloga. Cimara continuava a companheira

da mãe com os afazeres do lar.

Dona Amália já sentia até um pouco de alegria. Vivia uma vida mais

tranquila depois de tanto sofrimento; hoje, ao menos, tinha comida na

panela sem precisar pedir aos vizinhos.

Não durou muito a vida tranquila. Um dia, recebeu a notícia de que

Celina, que se dedicava a ter uma vida melhor, faleceu, vítima de um derrame

cerebral. A verdade é que as noites sem dormir e o excesso de cafés

para tirar o sono e poder estudar mais acabaram por determinar o mal

que causara sua morte.

Dona Amália não pode sequer trazer o corpo da filha para ser sepultado

na terra do Chão Preto. Ela foi, pela primeira vez, a São Paulo para

ver pela última vez a querida filha agora morta. Seu Benito nem ficou sabendo

da morte da filha, pois estava ocupado em suas viagens e não tinha

contato com dona Amália.

Clamiro acabou bêbado pelas sarjetas, comendo e bebendo o que

as pessoas de bom coração lhe davam; Celino, um dia, saiu de casa para

ir à casa de um amigo, mas não chegou lá e nunca mais voltou – ninguém

soube mais dele. Dona Amália enlouqueceu. Vivia perambulando pelas

ruas, conversando e ralhando com seus filhos. Cimara estava sempre a

buscá-la pelas ruas da cidade, trazendo-a de volta para casa, porém como

não era possível estar sempre vigilante com relação a ela, pois fugia com

facilidade, morreu atropelada em uma manhã fria do mês de agosto, colocando

fim na história de uma humilde moradora da terra do peão.

sergio balsanulfo
Enviado por sergio balsanulfo em 13/03/2024
Código do texto: T8018643
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