FOI O VENTO
POR: Sônia Machado
Capítulo 29
NAQUELA MANHÃ FRIA E SECA DE FINAL DE JULHO, depois que o táxi deixou Lívia de frente a casa onde morava, ela subiu as escadas como se medisse cada um dos oito degraus de mármore branco.
Quando abriu a porta, um vazio bateu de cheio em seu peito ameaçando jogá-la ao chão e Lívia instantaneamente segurou no portal. Era um vazio mais forte que o vento lá fora que assobiava derrubando folhas e entrando pelas mínimas gretas das janelas.
Lívia ficou ali parada por instantes no limiar da porta, como que criando coragem para entrar. As mãos segurando o portal com tanta força que ela mesma pensou que fosse derrubá-lo.
—Lívia, minha filha... É você?— Parecia ouvir, vindo do quarto, a voz da mãe.
Uma parte dela não queria pensar e nem criar lembranças, mas a outra parte, fraca, talvez, ou humana, melhor dizendo, foi correndo até o quarto da mãe e encontrou senão a cama vazia e a velha colcha de retalhos estendida. Os quadros costurados pela mãe e que, nada mais eram que um mix de cores e estampas, de repente pareciam criar formas e cada um tinha um pedaço de sua vida: a costureira de fundo de quintal que o câncer inclemente levou. Em cada retalho, tinha uma lição e uma saudade.
Lívia se lembrava de quando a mãe fizera aquela colcha. Ela era ainda tão pequena e ajudava a mãe organizando os quadros de tecido de cores e estampas variadas. Sentada sobre um velho tapete ia tentando fazer combinações como se brincasse com um quebra-cabeça.
Naquele instante, a vida lhe pareceu realmente um quebra-cabeça e Lívia ficou indecisa sobre quais peças seriam necessárias para cobrir o vazio imenso que a mãe havia deixado.
Então saiu depressa do quarto da mãe, mas as lembranças a seguiram guiando seu olhar para a velha poltrona xadrez de azul e bege e, lá estava sua mãe lendo, como nos últimos dias, o romance “Ressurreição”. O xale de lã cinza nos ombros e o olhar abatido fixo numa página qualquer do livro. Lívia aproximou-se e a imagem da mãe se dissipou, mas o livro estava lá desde a última vez, antes de ir para o hospital. Lívia o tomou nas mãos e abriu-o onde estava o marcador . Um frase lhe chamou a atenção:
Ela, sim, ela vê que a flor inclina o colo, e que não tarda o vento da noite a dispersá-la no chão. Mas do mesmo modo que a beleza lhe não acordara vaidades, assim a decadência lhe não inspira terror. (ASSIS, MACHADO, 1872).
Lágrimas desceram dos olhos de Lívia ao se lembrar da mãe, da dignidade com que enfrentava a doença. Sim, a decadência não lhe inspirara terror. Pelo menos não se percebia, tal era a suavidade de seu semblante. E essa suavidade permaneceu até mesmo depois de fechar os olhos para sempre.
Lívia fechou o livro com força e caminhou até a estante guardando-o entre a coleção completa de Machado de Assis, o tesouro literário que sua mãe mais adorava.
Quando já ia se afastar, porém, seu olhar se desviou para o único porta-retratos da estante. Lá estavam, emoldurados, no simples e clássico 15x21 prata, sua mãe, seu pai e ela, numa fotografia que haviam tirado quando ela terminara o ensino médio. Um ano antes de o pai falecer. Agora pouco mais de dois anos depois era a vez de sua mãe. E ela ficara sozinha. Lívia correu a mão pela superfície do porta-retratos na esperança de sentir a textura real de seus pais. Só pode sentir aqueles sorrisos parados no tempo. Apenas um passado preso ali atrás do vidro já embaçado. Lívia teve ímpetos de atirá-lo na parede imaginando que assim se libertaria de toda a dor que a consumia.
Resistindo, contudo, à brutalidade de seus sentimentos, apenas virou o porta-retratos escondendo a sua história. Depois virou também as costas, tirou o casaco preto e o jogou no sofá com tamanha força, como se esse gesto fosse um bálsamo. Às vezes temos a sensação de que os gestos bruscos aliviam dores, estresses e tantos outros sentimentos negativos.
Lívia queria, pelo menos naquele momento, colocar na cabeça que aquela parte de sua história acabava ali e que agora era só ela e mais ninguém no mundo. Precisava matar a dor, a saudade e a lembrança. Lívia pensava que era o certo a fazer se quisesse sobreviver.
Naquela tarde fria, Lívia trancou o quarto da mãe e guardou a chave numa gaveta qualquer.
—Desculpe-me mamãe— ela falou em voz alta. —Preciso de um tempo. Lívia estava sempre precisando de um tempo. Pedira tempo a Arthur, ao avô, à mãe e a ela mesma Não estava preparada para tantos acontecimentos tristes. Ela queria acreditar que o tempo resolveria as coisas para ela.
Depois de trancar o quarto da mãe, passou pela estante e pegou o porta-retratos que, para ela, naquele momento, retratava somente a ausência e o escondeu num canto qualquer junto com os livros de sua mãe.
—Preciso sobreviver— E foi direto para o banheiro. Lívia tinha esperança que a água escorrendo pelo seu corpo levasse para o ralo a dor e o vazio. Mas era só uma ilusão. O vazio que Lívia sentia era semelhante a um “oco” dentro de si como lhe tivessem arrancado tudo e, no entanto ainda tinha um peso difícil de suportar. E a dor? Era pior que qualquer dor física porque era uma espécie de ausência eterna e que trazia junto sentimentos de tristeza, raiva, saudade, frustração, impotência... Uma mistura que doía no corpo e na alma.
Lívia tentou preencher o vazio andando a esmo pela casa até que a noite a encontrou debruçada na janela. Sentia-se melhor com os açoites do vento frio em seu rosto. Às vezes, o flagelo que impomos a nós mesmos dá a impressão de que nos sentimos melhor.
Finalmente, o cansaço dos últimos dias a fez desabar na cama e dormiu até que o sol do outro dia a acordou com seus feixes de luz atravessando o vidro da janela. Iluminada na sua dor Lívia teve ímpetos de raiva.
—Como o sol pode brilhar tanto se eu me sinto como se tudo estivesse escuro? — E empurrou o edredom para um lado. Ainda havia dentro dela um sentimento de cólera e raiva comum nos lutos. Eram sentimentos de inconformidade, de revolta, ressentimento.
— Não é justo!— E vestindo-se foi para a cozinha.
Lívia tomou o café da manhã ainda com a sensação de vazio a rondando. Horas ele parecia ali sentado na cadeira ao seu lado. Ora levantava-se e lhe servia mais uma xícara de café. E isso lhe parecia tão estranho. A sensação de estar só é estranha. Mesmo com o vento batendo na janela.
Quando a mãe ainda estava viva, só o fato de ela estar no quarto, mesmo doente, já preenchia qualquer vazio. De repente, Lívia teve a sensação de que ela apareceria na porta da cozinha a qualquer momento.
—Isso não pode estar acontecendo! Mamãe como eu queria que tudo voltasse a ser como era antes. — Lívia soluçou. —Eu não queria que você tivesse partido. Porque partiu? Porque me deixou sozinha? A dor de ter perdido você é tão grande mãe. Você nem pode imaginar. —E debruçando sobre a mesa chorou até que não houvesse mais lágrimas.
Depois de algum tempo levantou-se. Lívia tinha noção de que a morte levara não só sua mãe, mas todo o contexto ali dentro daquela casa. Nada mais seria igual como era antes. Nem as funções, nem as atividades. Levara inclusive a única fonte de renda estável.
— Preciso sobreviver... — Ela disse para si mesma outra vez. E sobreviver, para Lívia, significava, além de afastar a dor e o vazio da perda de sua mãe, focar também na realidade que a esperava.
De súbito Lívia foi para seu quarto. Passou a manhã rabiscando num papel a sua realidade financeira naquele momento e a que certamente viria. Esse gesto pareceu-lhe um pouco desumano apenas um dia após a partida da mãe. Sentiu-se de uma frieza tamanha que chegou a jogar a caneta na mesa e fechar o caderno de contas. Ela se lembrou do avô, cuja frieza e arrogância tinham sido a alavanca para seguir depois de suas tantas perdas e como essas atitudes tinham afetado sua família. Ela não queria ser assim. Mas admitiu que a racionalidade de poucos minutos atrás tivesse afastado um pouco a dor. Ou pelo menos camuflado a dor.
—Será que a frieza é uma autodefesa? —Lívia perguntou para si mesma enquanto se lembrava do avô. —Duvido que meu avô não tivesse sentimentos por trás daquela armadura fria e prepotente. Duvido. Não fosse assim não teria ido ao funeral de minha mãe. Ele apenas suprimiu seus sentimentos ao longo da vida por medo de sofrer. Seu orgulho era seu escudo. Agora o compreendo ainda mais.
Num impulso Lívia abriu de novo o caderno de contas.
—Preciso sobreviver... — repetiu enquanto retornava às suas contas pensando na importância da matemática para incentivar o cérebro com coisas lógicas. Logo ela daria um jeito na sua dor e no vazio ainda que o produto das contas fosse negativo.
— Até mesmo um número negativo tem sua importância. Eu não sei qual. Mas talvez seja a alavanca que eu preciso para seguir em frente. — Lívia dizia essas palavras em voz alta quase como uma reflexão. É que às vezes tudo serve de justificativa para nossas ações. Sentimos-nos melhor.
Além disso, Lívia reconhecia que a morte trás também consigo, junto com a tristeza, essas partes burocráticas. Os que partem nada levam. Mas os que ficam são obrigados a prestar contas do que deixaram, sejam bens ou dívidas.
Ela e a mãe não tinham muitas economias e as que tinham foram gastas no funeral. Não havia sobrado nem para o aluguel do mês. As aulas particulares não lhe rendiam tanto assim. Lívia estava numa situação bem complicada. Precisava encontrar um lugar menor e mais em conta para morar. Apenas um quarto, talvez. Além do mais não queria mesmo ficar naquela casa que era do avô.
Quando foi dormir naquela noite, Lívia tinha olheiras profundas, resultado do cansaço cuidando da mãe nos últimos tempos e da dor d e sua perda. E tinha também a questão da sua sobrevivência.
—Quando as coisas parecem já difíceis, tudo parece piorar. — Lívia disse para si mesma olhando o teto forrado de madeira. No entanto, ela tinha esperança que tudo ia se resolver. A mãe lhe ensinara que é preciso coragem para enfrentar situações difíceis e nunca perder a esperança.
— As situações difíceis é que nos revelam a nossa maturidade— D. Esmeralda havia dito um dia. — Quando tudo passa, percebe-se que nos tornamos mais fortes.
Ela havia dito também quando já estava no hospital:
— Minha filha, é preciso aprender com as dificuldades. E para superá-las é preciso ter a mente flexível, ser otimista. — E apertando as mãos de Lívia ainda falou: — É preciso ter consciência de que tudo na vida é passageiro.
E foi pensando nas palavras da mãe que Lívia adormeceu. Lembrá-la, já não lhe causava tanta dor, mas um desejo de superar tudo.
CONTINUA... MAS LOGO SERÁ O FIM- FALTA POUCO
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