FOI O VENTO

 

POR: Sônia Machado

 

Capítulo 28

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QUANDO O ADVOGADO DR. FONSECA SAIU FINALMENTE do escritório do Sr. Lopes, este ligou para o administrador da Imobiliária e cancelou uma reunião que teriam naquela manhã. Mandou chamar o motorista e pediu que o levasse à Rua Tonelero.

Mais uma vez, como fizera quase todos os dias nas últimas semanas, o Land Rover Range do Sr. Lopes parou diante da antiga casa onde Lívia morava com sua mãe.

Naquele dia, porém, ele desceu do carro e aproximou-se mais da casa. Num ímpeto de coragem e ousadia segurou o portãozinho de ferro e o abriu.

Sr. Lopes havia decidido procurar D. Esmeralda e a filha.  Já não conseguia mais conviver com aquela angústia que dominava todo seu ser.

 Ter conhecido a neta Lívia fora crucial para o seu arrependimento e mudança de pensamento e atitudes. Ele não sabia se era porque ela se parecia com sua esposa Leonor ou porque ela havia tido coragem bastante para enfrentá-lo. Ou se era simplesmente porque era neta. De repente Sr. Lopes se deu conta de que os netos transformam os avós em pessoas melhores. Lívia havia derretido seu coração.

— Ter um neto é ter o coração multiplicado em amor, alegria...  — admitiu para si mesmo, embora Lívia não tenha lhe dado o abraço que ele esperava. Mas que fazer? Era esperar demais depois de tudo. O ser humano não é totalmente perfeito.

Então, Sr. Lopes resolveu, naquela manhã, tomar a iniciativa de consertar, enquanto era tempo, pelo menos uma parte daquilo que seu orgulho havia destruído.

 

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O velho portãozinho rangeu ao toque de suas mãos e Sr. Lopes reconheceu até mesmo aquele barulho tão banal para ele há tantos anos atrás.  Observou, por instantes, a escada de mármore branco, a coluna do alpendre... Tudo parecia igual como antes, mas tão silencioso que chegou a estremecer.

Quando Sr. Lopes já ia pisar o primeiro degrau da escada, uma mulher que o observava do portão da casa vizinha se aproximou:

—O senhor procura alguém da casa?—A senhora que devia ter em torno de setenta anos se dirigiu ao Sr. Lopes, curiosa. Era a primeira vez que alguém de posses vinha procurar por Lívia e D. Esmeralda, embora ela já tivesse notado o Land Rover Range parado outras vezes ali perto e depois arrancar sem descer ninguém.

Sr. Lopes parou e se virou.

—Sim. —Sabe se tem alguém em casa?— Ele estava decidido ir até o fim. Estava decidido a entrar naquela casa e se redimir perante Lívia e sua mãe. Ainda que elas não o recebessem, ele estava decidido pelo menos tentar. Isto se tornara uma questão de honra agora que os anos e a arritmia cardíaca o lembravam de que o tempo estava cada vez mais curto.

— Não. Não tem ninguém em casa não meu Senhor. —A senhora confirmou—Na verdade algo muito triste aconteceu essa manhã com D. Esmeralda. —A senhora falou suspirando e lançando um olhar em direção à porta da casa.

—O que aconteceu com ela?— O coração do Sr. Lopes saltou no peito.

—Há dias que D. Esmeralda estava internada em fase terminal de câncer. Ela faleceu essa manhã. —comunicou com a mão apertando o peito de uma forma que beirava o exagero.

Diante da trágica notícia, uma crise de arritmia ameaçou Sr. Lopes e ele segurou com mais firmeza a sua bengala de caminhada.  Além disso, o vento frio e forte parecia querer arrancá-lo do chão.

Sr. Lopes sempre tivera a impressão de que a morte lhe castigava. Sentira-se assim quando a filha Mariana havia partido e também sua esposa Leonor. Ele quis camuflar a dor com um orgulho sem sentido e que o tornara mais prepotente. Ele queria mostrar à morte que estava acima dela.

No entanto, ali na calçada da antiga casa, a notícia da partida de D. Esmeralda, teve o efeito contrário de anos atrás. Sr. Lopes se sentiu frágil e incapaz de lutar contra a dor. Aliás, ela veio mais forte porque trouxe junto, o reconhecimento de todos os erros cometidos, e a certeza de que não tinha mais como mudar nada. 

—Tarde demais... — falou quase sem perceber. Na verdade, Sr. Lopes não queria mais lutar contra a dor. Foram mais de vinte anos fazendo isso e ele agora estava cansado. Já não importava mais nem a questão do tempo. Era como se tudo tivesse se consumado e ele, estava, inclusive, preparado para partir também para o outro plano, mesmo sabendo que levaria muitas penas para purgar e que o céu para ele parecia algo distante.

— O que disse senhor? —perguntou a senhora que o olhava intrigada.

Sr. Lopes olhou para a mulher, e simplesmente disse:

 — O arrependimento quando vem tarde não há purgação pior que a dor na alma. Ela ganha proporções de eternidade. —Sr. Lopes pouco se importava com o olhar curioso da mulher que o observava. Ele queria apenas admitir em voz alta o que estava sentindo. Dava-lhe a impressão de que se sentia melhor.

A noção do “tarde demais” foi como um baque para Sr. Lopes que ficou ali no degrau da escada parado como se não acreditasse naquela dura e fria realidade.

Sim, às vezes o tempo não espera, embora no caso do Sr. Lopes esse tempo tenha lhe esperado mais de vinte anos para que redimisse. Mas ele percebeu, de fato, muito tarde.

A vizinha notando a perturbação do Sr. Lopes perguntou:

— O Senhor... Quem é?

— Sou o avô de Lívia. — E com sua dor na alma atravessou o portãozinho e se afastou entrando no Land Rover Range.

 

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Tentando ser o mais discreto possível, Sr. Lopes foi ao funeral de D. Esmeralda. Ele precisava fazer isso. Não por ela, mas por ele mesmo. Quanto a ela, Sr. Lopes conhecia bem sua nobreza e certamente já o havia perdoado. Ele percebera esse perdão estampado em seus olhos naquele dia em ela descera da ambulância e o olhara por alguns instantes.  Foi uma breve eternidade de olho no olho que desencadeou muitas mudanças de atitudes. Dela e dele.  Os olhos são sinceros. As palavras nem sempre.

Durante o enterro de D. Esmeralda, Sr. Lopes visualizou, ao longe, Lívia se despedindo da mãe. Viu-a jogar um punhado de terra na sepultura e uma rosa. A dor em sua alma se tornou mais forte. Ele se sentia culpado por Lívia estar agora sozinha no mundo. E quando a viu deixar o cemitério caminhando firme pela alameda que dava para a saída, Sr. Lopes enxergou nela o mesmo porte de orgulho que ele carregara ao longo da vida.

Sr. Lopes a compreendeu. Compreendeu até mesmo quando ela o viu e desviou o olhar. A dor foi maior. Ainda assim ele a compreendeu. Afinal que poderia ele esperar depois de ter renegado sua família?

Ele só não queria que ela passasse tanto tempo amargando o orgulho como ele fizera.  Porque o orgulho retarda o arrependimento e a redenção.

 

 

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Apoiado em sua bengala de caminhada, Sr. Lopes saiu do cemitério devagar e entrou no Land Rover Range e depois se isolou em sua casa por dias seguidos remoendo a sua purgação. Mal descia para fazer as refeições para preocupação dos funcionários da casa. Depois voltava para a biblioteca onde lia por horas seguidas ou ficava sentado na poltrona da sacada de seu quarto simplesmente olhando o tempo como se refletisse eternamente.

Nessas reflexões, Sr. Lopes assistiu, sem, contudo perceber, o mês de setembro chegar trazendo os resquícios das brumas de agosto pelos céus de São Paulo.  Havia também folhas secas pelas ruas e a baixa umidade do ar sufocava a respiração. Setembro trouxe também os ventos de agosto que ora sopravam fortes, ora moderados. Eles ajudavam a diminuir um pouco a sensação térmica do calor que substituíra o frio.

Aos poucos tudo parecia ter perdido o sentido para Sr. Lopes. Até mesmo o mundo dos negócios pelo qual vivera e tudo fizera e que fora seu ponto de fuga por tantos anos. Porque era para onde fugia sempre que algum conflito acontecia.

Apesar das ligações insistentes do seu administrador não aparecera na Imobiliária como de costume no início do mês.

—Sr. Lopes, precisamos fazer o acerto de contas de agosto e fechar os relatórios. — dissera o administrador uma manhã em que finalmente Sr. Lopes atendeu.

—Que é esse acerto de conta diante do acerto de contas que terei com Deus? — Sr. Lopes respondera apenas.

— O Senhor está bem?—O administrador pareceu preocupado, pois Sr. Lopes fazia questão de ver todas as planilhas no início de cada mês e agora essa conversa de acerto com Deus...

—Não se preocupe. Vou mandar Dr. Fonseca ver isso com você. Quanto a mim preciso ficar aqui me preparando— E desligou o telefone

Na verdade, Dr. Fonseca, que era seu amigo além de advogado, era o único com quem ele realmente conversava abertamente. Ele era uma espécie de confessor.  Nessas conversas, Sr. Lopes ia falando de suas reflexões e contando a história de sua vida.

—Sabe Dr. Fonseca... Hoje vejo que minha vida tomou rumos que não deveriam ter tomado depois que recebi a herança de meu tio. —falou um dia com o olhar perdido no céu que parecia sumido na paisagem de prédios de São Paulo. — O dinheiro me parecia algo inofensivo porque supria muitas coisas que nunca tive quando era pobre. Proporcionava muitas coisas boas.

— Mas ele proporciona... — O advogado falou.

— Sim. Proporciona. O problema foi que o excesso de bens me subiu à cabeça. Eu não soube lidar com isso. Deixei a riqueza me escravizar. Eu não possuía a riqueza, ela é que me possuía. Percebe Dr. Fonseca? — disse fitando os olhos do advogado.

—Sr. Lopes não se culpe afinal quem não quer uma vida melhor sem preocupações. Mais conforto para a família. Isso não é errado. —Dr. Fonseca tentou justificar Sr. Lopes.

— Sim, as pessoas querem uma vida melhor porque ser pobre não é fácil. Falo por experiência própria. Já passei muitas dificuldades com minha família.  Mas nós éramos felizes. Só hoje vejo isso. Depois que fiquei rico foram só conflitos. Eu perdi a minha família por causa do dinheiro. Eu confiei mais nele, no poder que ele dá. No reconhecimento perante a sociedade. Mas tudo isso é uma ilusão. Hoje vejo que a riqueza é capaz de tudo porque eu era um homem honrado.  Ela distorceu, ou melhor, mudou meus valores. Eu caí na armadilha. Se não tivesse ficado rico teria aceitado a mãe de Lívia como nora, não teria feito o que fiz com meu filho e teria convivido com minha neta.

—Sr. Lopes... Talvez seja o caso de eu mandar um psicanalista para conversar com o Senhor. —  O Advogado sugeriu.— Talvez se sinta melhor e....

Sr. Lopes o cortou.

— Não quero me sentir melhor, você não entende? Não depois de tudo que fiz.  Não quero saber de psicanalistas. Eles vão querer amenizar minha culpa e eu não quero isso.  Se é meu amigo como diz, respeite essa minha decisão. Mas se você não quiser me ouvir pode ir embora.

—Não. Não é isso... —O Advogado ficou desconcertado. —Eu só queria ajudar...

Na verdade Dr. Fonseca desconfiava que Sr. Lopes tivesse sido acometido por uma depressão, pois era visível a sua tristeza profunda, a sua apatia e a perda de interesse pelas atividades que sempre havia feito. Até sua prepotência tinha sumido. Sr. Lopes era um homem em decadência e não tinha nada a ver com a idade, mas com alma.

Com relação à sua saúde, Sr. Lopes só recebia sem reclamar a visita de seu Cardiologista. Era preferível a ter que ir para o hospital. Além disso, tinha uma enfermeira que ficava zanzando na casa e em seu quarto o dia todo. Ele tolerava, pois era ela que ministrava seus inúmeros medicamentos. Além disso, ele não queria mais ser taxado de ranzinza ou prepotente.  O tempo que lhe restava não cabia mais as velhas coisas e sentimentos. Era um tempo de preparo e de reflexões.

 E nesse tempo de reflexões, Sr. Lopes sentiu que precisava fazer a sua parte e procurar por Lívia. Mas depois da morte de D. Esmeralda ele precisava respeitar o tempo de luto da neta. Não era justo procurá-la para importuná-la com suas inquietações da alma. Ele decidiu que assim que completasse um mês da partida de D. Esmeralda iria procurar por Lívia. Não importava o pedido de tempo que ela havia feito. Ele queria ver a neta mais uma vez.

Mas com o passar dos dias o estado de saúde do Sr. Lopes piorou e ele já não podia mais fazer esforços. Mas não quis saber de internações e preferiu ficar em casa aguardando a hora de partir.  Ele queria ver Lívia antes de partir e, por isso, mandou, através de seu motorista um bilhete pedindo que ela fosse encontrá-lo. Talvez ela não negasse seu pedido.

Contudo, o tempo de Sr. Lopes havia se esgotado e sua hora de partir chegou à tarde daquele mesmo dia, quando ele estava sentado em sua poltrona na sacada. Ele assistia a uma chuva mansa de inverno cair e regar seu jardim. Era já o prenúncio da primavera. E enquanto a chuva caia pelos beirados parecia trazer sensações estranhas e dolorosas ao Sr. Lopes. Apesar de ter enviado o bilhete para Lívia de manhã, algo lhe dizia que fora tarde demais.

Um leve vento fazia borrifar minúsculas gotículas de chuva em seu rosto e Sr. Lopes soube que era a despedida, pois trouxe como prelúdio, um lúgubre arrepio e, em seguida uma dor no peito. Ele, então se curvou para um lado e ficou assim, como se dormisse.

Sr. Lopes despediu-se da vida levando consigo a dor da alma que só não foi maior porque teve pelo menos tempo de se arrepender de todos os seus erros. Só não tivera tempo de abraçar Lívia.  De sentir a experiência de ser avô.

Na verdade tivera tempo de sobra. Mas quando finalmente decidiu, esbarrou na figura do outro que, do lado de lá, machucado, também amargava o próprio orgulho. Assim é o ser humano.

 

 

 

 

CONTINUA...

 


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https://www.youtube.com/watch?v=8M-DHAoeyDI